O músico carioca Jards Macalé, em abril de 1976 - Acervo UH/Folhapress |
Jards Macalé foi, ao lado de Gal Costa, um grande contraventor cultural

Jards Macalé foi, ao lado de Gal Costa, um grande contraventor cultural

  • Após exílio de Caetano e Gil, cantora fez parceria com músico
  • Artistas compartilhavam de um consenso poético e estético

Renato Contente

Jornalista, é doutor em sociologia, pesquisador da FGV e autor de 'Não Se assuste, Pessoa! As Personas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar Brasileira'

A parceria entre Gal Costa e Jards Macalé seria fundamental, junto ao poeta Waly Salomão, para a consolidação da contracultura brasileira em seu campo musical e poético, com o desbunde que tomaria corpo no Rio de Janeiro, no início dos anos 1970.

Macalé já trazia consigo a auréola vacilante de anjo torto quando se aproximou de Gal, no final de 1968, em São Paulo, em meio a uma situação que havia deixado a artista sem chão: a prisão e o posterior exílio de quase três anos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em dezembro daquele ano, poucos dias após a promulgação do AI-5.

Com o afastamento dos baianos, Gal, uma das principais artistas em ascensão da música popular brasileira, ficaria órfã de suas principais referências pessoais e artísticas. A situação política era tão delicada que a gravadora optou por postergar o lançamento do primeiro álbum solo da artista, gravado em 1968, para o ano seguinte, para evitar possíveis sanções ou represálias.

A parceria com Macalé se materializaria no segundo álbum solo da intérprete, o psicodélico "Gal", produzido por Manoel Barenbein e lançado em 1969, que ecoaria, de forma dissonante e raivosa, a ausência dos exilados.

Macalé assumiria os violões de todo o disco experimental e assinaria a faixa derradeira -uma de suas primeiras composições-, "Pulsars e Quasars", em parceria com Capinam. Na canção, Gal gritaria com estridência e dor, como se escrevesse uma carta para além-mar: "Dos sóis, Ca e Gil me mandem notícias logo/ A sós, pulsos abertos, eu volto".

A sinergia entre Gal e Macalé -mais do que ocorrera entre a artista e Tom Zé, por exemplo, que era um tropicalista de primeira hora e até um esperado alicerce artístico forte após o exílio dos amigos- havia sido incontestável.

Eles partilhavam de um consenso poético e estético que dava continuidade aos interesses musicais de ambos naquele momento: a devoção radical e subversiva a João Gilberto e a abertura para o rock de influência estadunidense, do rockabilly aos vocais contemporâneos de Janis Joplin que tanto influenciaram Gal.

Essa trama musical robusta era acrescida ainda de poéticas melancólicas de forte tom político, como nas parcerias entre Macalé e o poeta Duda Machado -maldito como ele-, com quem compôs "Hotel das Estrelas" e "The Archaic Lonely Star Blues". As músicas foram gravadas por Gal no álbum "Legal" (1970) e, no caso da primeira, também em "Fa-Tal - Gal a todo Vapor", de 1971.

Ainda em São Paulo, a parceria entre Gal e Macalé geraria um show em conjunto no Teatro Oficina, em novembro de 1969, o "Gal Costa & Macalé", e até a parceria em uma empresa de gestão artística, a Tropicart, ao lado de Capinam e Paulinho da Viola.

Após o fim da temporada no Oficina, os dois partiram em definitivo para o Rio de Janeiro, cidade cujo público havia recebido com entusiasmo uma temporada da cantora na boate Sucata, sob a batuta de Macalé, em abril de 1969. Buscavam, sobretudo, ares mais solares.

Sem conseguir saltar do abismo à sua frente, Gal teve a ajuda providencial das asas tortas, mas virtuosas, de Macalé para ser carregada dali e seguir rumo à capital fluminense. Lá, a barra também era pesada, mas pelo menos havia o respiro de uma efervescente cena contracultural emergente e as areias quentes de Ipanema.

Outro agente cultural que contribuiria para a artista alçar voos importantes na cidade seria o poeta Salomão, que havia saído às pressas de São Paulo após temporada traumática no Carandiru, onde cumprira pena por porte ilegal de maconha.

O adensamento da relação entre o poeta e o músico ocorreu nesse contexto, marcado pela consolidação de um repertório e de uma linguagem musical para uma Gal pós-tropicalista.

No início de 1970, tendo Macalé e Salomão como alicerces artísticos, a artista se integraria cada vez mais a uma rede de poetas, músicos, compositores, cineastas e artistas visuais ligados à vanguarda e à contracultura. Isso simbolizava para Gal tanto um consolo quanto a possibilidade de dar continuidade à experimentação estética acionada pelo germe tropicalista.

Foi nos ensaios para o show "Deixa Sangrar" (1971), baseado no repertório do álbum "Legal", terceiro solo de Gal, que a contracultura ganhou força a partir de um gesto fortuito. Salomão compartilhou com Macalé um pedaço de papel com uma letra que achou que a cantora poderia incorporar ao roteiro. Em 15 minutos, Macalé musicou "Vapor Barato".

Inicialmente sob um arranjo roqueiro, que demandava um canto apressado e ofegante, a canção foi inserida no espetáculo, tendo marcado o início da parceria entre Gal e Salomão, e entre Salomão e Macalé. Em poucos meses, ela seria espontaneamente alçada ao papel de hino emocional de uma geração de ovelhas desgarradas e silenciadas.

A veloz absorção cultural de "Vapor Barato" credenciaria Salomão para dirigir o espetáculo "Fa-Tal - Gal a todo Vapor", que ganharia registro em disco no mesmo ano. Nas palavras do poeta, a canção seria "oposta à tendência 'liricista' e nebulosa que predominava. Era direta, frontal, dizendo o que era possível naquele momento de desencanto".

No novo espetáculo, a canção seria relida sob um arranjo melancólico. Assim como na canção, o interlocutor de Gal, Macalé e de Salomão era uma figura difusa. Os bronzeados vivíssimos das Dunas da Gal -trecho de convivência do "desbundados" em Ipanema-, os amigos exilados, mas vivos, os presos políticos mortos e os presos políticos quase mortos.

A partir de "Vapor Barato", Macalé ganhou tração para investir em sua própria obra artística de forma mais sistemática e com a confiança -nem sempre estável- das gravadoras, como no álbum que levou o nome, em 1972. Da parceria com Salomão, construiu uma obra que dividia entre o que chamava de "morbeza romântica" (do disco "Aprendendo a Nadar", de 1974) e o conjunto das outras composições que fizeram juntos, o que abrange canções como "Olho de Lince", "Mal Secreto" e a própria "Vapor Barato".

Macalé operou como força organizadora de um projeto artístico que confrontava modelos estabelecidos, incorporava risco e tensionava fronteiras entre gêneros. O conjunto de sua obra aponta que a sua radicalidade foi parte constitutiva da cena contracultural brasileira e de seus desdobramentos posteriores.

Ele não orbitou a contracultura, foi um de seus agentes centrais, e sua parceria com Gal e Salomão contribuiu para tornar popular e incontornável o alcance dessa atuação.

Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/11/jards-macale-foi-ao-lado-de-gal-costa-um-grande-contraventor-cultural.shtml