Publicado por: Marcel Miwa
A frase não é minha, em vez, foi dita por Daniel Pisano, sócio da tradicional vinícola uruguaia que leva o sobrenome da sua família e trata-se de uma das figuras marcantes e queridas no mercado brasileiro.
Ao contar sobre a decisão de plantar a petit Verdot nos vinhedos da família, em Canelones, Daniel emendou a história:
"Era época do fax ainda e íamos visitar a região de Bordeaux. Enviamos diversas mensagens de fax para os châteaux e o Château Latour (um dos consagrados 1er. Cru Classé) respondeu confirmando a possibilidade de nos atender. Ao chegar, o enólogo nos recebeu com entusiasmo dizendo que conhecia a famosa tannat do Uruguai. Ficamos espantados no início, pois somos um pequeno produtor e de um país não muito conhecido no mundo do vinho - ainda mais na época (década de 90). Ele comentou que antes da filoxera, havia algo de tannat nos vinhedos de Bordeaux. Mas tal qual a petit verdot, era uma porcaria, pois os cachos não amadureciam nunca. Aí pensei: se nos demos bem com porcaria da tannat, também podemos nos dar bem com a porcaria da petit verdot, vamos plantar!"

Antes de ser perguntado se provado sem a companhia de comida, os taninos do vinho poderiam passar a impressão de rusticidade, Daniel, novamente como um ótimo contador de histórias, comenta: "Pego o exemplo da tannat. Odeio que falem de um tannat domado ou um tannat domesticado. Para que domar seus taninos se essa é sua marca e personalidade. Se não quer um vinho assim, busque por um merlot." Vale a mesma lógica para este petit verdot.
Pode parecer anedota mas a história das razões que levaram Pisano a plantar a petit verdot se repete em muitos aspectos. O enólogo e estrela do mundo do vinho, o norte-americano Paul Hobbs, em diversas ocasiões comentou que antes de decidir em criar a Viña Cobos, em Mendoza, pesquisou sobre a malbec e constatou que também antes da filoxera a variedade que hoje é emblema da Argentina já foi a cepa mais plantada em Bordeaux, superando a dupla merlot e cabernet sauvignon, hoje dominantes. A malbec era produtiva, mas sofria com anos frios e chuvosos, mais abundantes naquela época.
A filoxera é um inseto que se fixa nas raízes das videiras e se alimenta da sua seiva, levando a planta à morte. A praga chegou a Europa na segunda metade do século XIX, dizimando boa parte dos vinhedos do continente. Algumas exceções foram vinhedos plantados em solo franco-arenoso (outra exceção é o Chile, como um todo). A solução veio de seu país de origem, os Estados Unidos, onde as espécies de videiras locais não eram atacadas pela praga. Utilizar as raízes de vieiras americanas e enxertar as variedades europeias em seu tronco principal é a forma mais simples e propagada para evitar o ataque da filoxera.
Uma vez dominada a técnica da enxertia das videiras, a renovação dos vinhedos de Bordeaux deixou de lado variedades que enfrentavam dificuldades para amadurecer naquelas condições, como a malbec, a tannat e a carménère, priorizando as cepas que melhor produziam na época: cabernet sauvignon e merlot, entre as tintas, e sauvignon blanc e sémillon, entre as brancas.
Inegável também que a realidade climática de mais de um século atrás é bem diferente do momento atual. Se naquela época essas variedades (malbec, tannat e carménère) sofriam para amadurecer seus frutos adequadamente, hoje com o aumento das temperaturas médias anuais no mundo, volta-se a ver essas variedades nos radares bordaleses, em especial a malbec, que já aparece em doses homeopáticas em algumas garrafas importantes, como nos châteaux d'Issan (Margaux), Bouscault (Pessac-Léognan) ou Quintus (St-Émilion). Tanto malbec quanto carménère são variedades autorizadas para os vinhos com denominação de origem Bordeaux. A tannat ainda está fora desta lista, deixando para o berço, a região do Madiran, sua maior expressão. Da mesma forma, e também próximo de Bordeaux, a malbec tem sua excelência em Cahors (mas encontrada com alguma frequência também nos tintos do Loire).
Guia dos Vinhos
https://www.estadao.com.br/paladar/guiadosvinhos/mundo-do-vinho/A-porcaria-da-petit-verdot