Lucas Moura, do São Paulo, lamenta após sentir lesão no jogo contra o Palmeiras, no Allianz Parque, pelo Brasileirão Imagem: Marcello Zambrana/Agif |
Racha e canetas emagrecedoras: os bastidores da crise do DM no São Paulo

Racha e canetas emagrecedoras: os bastidores da crise do DM no São Paulo

Pedro Lopes e Gabriel Sá


A febre das canetas emagrecedoras chegou ao São Paulo de forma inusitada e se tornou um elemento na crise histórica que atingiu o departamento médico do clube em 2025 -a temporada contabiliza mais de 70 ausências de jogadores por problemas físicos.

Discordâncias em torno da prescrição do medicamento Mounjaro a atletas foram apontadas por diversas fontes ouvidas pelo UOL como símbolo de um departamento vulnerável à política do clube e cheio de divisões internas.

O Mounjaro é um remédio à base de tirzepatida, originalmente destinado ao tratamento de diabetes tipo 2 e obesidade.

Essa recomendação ocorreu sem conhecimento de vários profissionais da área de saúde do clube.

O médico em questão, o nutrólogo Eduardo Rauen, indicava também aos atletas um fornecedor que entregava um medicamento com embalagem, rótulo e bula em inglês -sinal de que não havia sido adquirido no Brasil.

Procurado, Rauen defendeu e explicou a prescrição, feita a dois jogadores.

"Conforme descrito na bula, pacientes com IMC acima de 27,5 associados a comorbidades - no caso específico, lesões articulares - têm indicação formal para o uso do medicamento, sempre com acompanhamento médico. Os dados mostram que os atletas conseguiram perder peso corporal, diminuir o percentual de gordura e melhorar a massa muscular", explicou.

"Trata-se de um procedimento médico legítimo, seguro, respaldado pela literatura e executado dentro das normas éticas e regulamentares. O paciente, em conjunto com seu médico, pode optar por comprar o produto diretamente em farmácias brasileiras ou realizar importação regular, permitida pela Anvisa mediante prescrição. O que importa - e sempre orientamos - é que o medicamento seja autêntico".

Rauen respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem. As respostas podem ser lidas aqui.

Na semana passada, o São Paulo reagiu a essa crise sem fim no departamento médico com um pacote de demissões e mudanças para 2026. Esse corte atingiu, majoritariamente, profissionais com anos de casa.

É uma tentativa de reerguer um clube que, nas últimas décadas, havia sido referência nacional no tratamento de lesões, mas que nos últimos anos tem perdido essa identidade em um ciclo de crises e reformulações.

A origem das lesões dessa temporada é foco de divergência e de difícil diagnóstico, mas a reportagem investigou os bastidores desse processo.

Profissionais chegaram ao clube por diferentes caminhos e sem integração e discordavam abertamente sobre protocolos de carga, avaliação muscular, condutas de prevenção, abordagens de reabilitação, nutrição e suplementação.

As diferenças se intensificaram ao longo da temporada e contribuíram para a ruptura no setor. O ambiente, considerado "insustentável" por dirigentes, precipitou uma reformulação profunda.

O caso Mounjaro ratificou a realidade de que no outrora departamento médico modelo do São Paulo convivem várias abordagens que estão distantes de falarem a mesma língua.

O próprio São Paulo admite que a falta de alinhamento foi problemática.

"O ano de 2025 serve como exemplo de como não devemos trabalhar. Um dos problemas identificados foi a resistência de parte da equipe que estava no clube a mudanças. Os números comprovam que tivemos resultados abaixo do estimado para o ano. Por isso, mudanças foram planejadas e já começaram a ser implantadas. O importante é que todos estejam alinhados no trabalho que tem que ser feito", diz o superintendente Márcio Carlomagno.

Carlomagno respondeu a todas as perguntas feitas pela reportagem. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.

Um clube com múltiplos DMs e atritos entre eles

Laboratório do Tecfut no CT de Cotia do São Paulo
Laboratório do Tecfut no CT de Cotia do São Paulo Imagem: Eder Traskini/UOL

O CT da Barra Funda recebeu em junho a instalação do TecFut, comandado por Rauen.

Rauen foi contratado pelo São Paulo para montar um departamento novo, com investimento de mais de R$ 200 mil mensais. Ele é indicação de Douglas Schwartzmann, diretor-adjunto da base, e passou a ter influência crescente na rotina dos atletas ao longo da temporada.

Ele começou sua trajetória no clube em Cotia (SP), onde funciona o CT das categorias de base, e é creditado como um colaborador importante na conquista da Copinha em janeiro deste ano.

Antes disso, já era conhecido por atender e acompanhar atletas, dentre eles Lucas Moura, e é respeitado entre jogadores no meio do futebol.

No São Paulo, sua chegada ao elenco profissional gerou mal estar, e seus métodos dividiram opiniões. Duas fontes do clube afirmam que ele nunca foi apresentado oficialmente ao resto da equipe, não participava das reuniões do DM e comparecia ao CT da Barra Funda uma vez por semana.

"Fui apresentado oficialmente à Barra Funda em junho, inclusive com registros nos meios oficiais do clube", diz Rauen. "Não cheguei como um profissional isolado, mas trazendo médico do esporte, nutrólogo, nutricionista, educador físico e fisiologista. Eu e a minha equipe não viemos como funcionários, mas sim como um complemento técnico".

Sua atuação era focada na parte metabólica dos jogadores, envolvendo nutrição, composição corporal e suplementação.

Foi nesse contexto de falta de integração que Rauen receitou o Mounjaro a atletas, sem conhecimento do DM fixo do clube.

O Mounjaro atua por meio da combinação de agonistas dos hormônios GLP-1 e GIP, reduzindo apetite, controlando glicemia e acelerando a perda de peso. Embora aprovado para fins clínicos, seu uso em atletas de alto rendimento é considerado controverso por especialistas, podendo causar perda de massa magra, desregulação energética e queda de desempenho.

Rauen ainda indicou o próprio fornecedor, e o medicamento adquirido era importado. Atletas relataram sintomas como enjoo e fraqueza. Parte do DM antigo do clube via o trabalho de Rauen com reservas, e o ligava à crise de lesões.

"Não concordo com a premissa de que a nossa abordagem deva ser estudada como possível causa das lesões. Entrei no clube durante a última temporada, e os problemas relacionados às lesões já vinham ocorrendo muito antes. Não existe relação lógica ou temporal que conecte o trabalho do TECFUT ao quadro de lesões pré-existentes".

Na diretoria do São Paulo, o diagnóstico foi outro, e Rauen é visto como parte da solução, não do problema. A reformulação da última semana atingiu justamente profissionais que estavam havia anos no Morumbi.

Saíram o fisiologista Luis Fernando Leite de Barros, seu auxiliar Paulo Eduardo Teixeira, o preparador Adriano Titton, o médico Pedro Henrique Perez, e os fisioterapeutas Carlos Alberto Presinoti e Cilmara Moreira.

A cúpula são-paulina considera que o problema estava em outras frentes, como o balanceamento das cargas de treinamento na fisiologia, e a preparação física.

A avaliação é de que os atletas frequentemente extrapolavam ou ficavam aquém das cargas de esforço estipuladas por indicadores científicos, por falta de iniciativa e coragem dos fisiologistas e preparadores fixos para se posicionarem frente à comissão técnica, interromper ou ajustar atividades. Isso teria sido um fator preponderante nas lesões.

Internamente, já havia, há meses, nomes em cima da mesa para substituir esses profissionais. O projeto de reformulação passa por dar mais autonomia e protagonismo à Rauen e apostar na sua metodologia.

Há ainda outras influências no departamento. O ortopedista Lucas Leite Ribeiro já passou a frequentar o CT da Barra Funda nesta reta final de temporada. Ele é parte de um novo projeto, um ambulatório de medicina regenerativa, anunciado para 2026.

Esse ambulatório é um projeto que vem da chamada Divisão de Excelência Médica - uma comissão criada dentro do clube, com presença de vários conselheiros, em 2021, na primeira iniciativa de modernização do DM.

A DEM, como é chamada a nova divisão, é fruto da política interna do clube e é outra voz de influência, paralela à diretoria, em um clube que, segundo um profissional ouvido pela reportagem, "tem três departamentos médicos dentro de um só".

Apesar de ter uma visão clara e definida de qual metodologia que manter para 2026, a diretoria são-paulina avalia que a falta de unidade foi um fator importante.

"Temos feito um trabalho de avaliação e implantação de medidas de processos já há algum tempo, que começou com a renovação total de equipamentos do Reffis. No entanto, entendemos que nada disso surte efeito se não há uma integração total entre as áreas e profissionais envolvidos e é nisso que estamos focando para que em 2026 tenhamos resultados melhores", diz Carlomagno.

Auxílio externo: o papel do Dr. Moisés Cohen


Moisés Cohen, consultor médico externo do São Paulo
Moisés Cohen, consultor médico externo do São Paulo Imagem: Divulgação

Em meio à instabilidade interna, o clube manteve apoio externo com especialistas. O ortopedista Moisés Cohen, referência nacional na área, tem sido acionado com frequência pelo São Paulo para casos específicos de reabilitação -especialmente os mais complexos.

Cohen ganhou destaque recente por ser o responsável direto pela recuperação do atacante Lucas Moura, que enfrentou problemas físicos persistentes no retorno ao futebol brasileiro.

A presença de Cohen funciona como um contraponto técnico ao cenário de disputas internas, mas também reforça a percepção de que o clube tem precisado recorrer a soluções externas diante da fragilidade do seu próprio departamento médico.

Atritos políticos e renúncia de conselho com Kaká


Kaká acompanha treino do São Paulo no CT da Barra Funda
Kaká acompanha treino do São Paulo no CT da Barra Funda Imagem: Erico Leonan / saopaulofc

Em 2021, quando se tornou presidente do São Paulo, Julio Casares já prometia reformular o departamento médico do clube e o Reffis, que um dia foi referência no tratamento de lesões de atletas profissionais.

Em outubro daquele ano, foi criado um conselho de notáveis -na ocasião, o foco era em modernizar a estrutura física e equipamentos usados no tratamento de lesões. Esse conselho era capitaneado pelo fisiologista Turíbio Leite de Barros, figura histórica do São Paulo, e contava com a presença de Kaká, além de sete outros médicos.

Depois de um começo promissor, o São Paulo criou a Divisão de Excelência Médica, liderada pelo conselheiro Dorival Decoussau, e que tinha participação de diretores do clube, dentre eles o atual superintendente Marcio Carlomagno e o diretor de compliance Roberto Armelin, além de vários conselheiros.

Os atritos começaram quando a DEM avisou ao conselho de notáveis que ele passaria a ser subordinado à nova divisão, não teria mais contato com o presidente Julio Casares e seria apenas um órgão de consultoria.

Depois de meses de atritos, a iniciativa terminou com a renúncia coletiva dos nove membros do conselho, incluindo Turíbio e Kaká. A carta, assinada por todos, foi encaminhada a Casares em julho de 2022, e nunca foi divulgada oficialmente pelo clube.

O São Paulo avançou e, sem o conselho de notáveis, renovou sua estrutura, criando o chamado Reffis plus, mas o setor médico seguiu sendo foco de turbulência.

Em 2022, o clube demitiu o renomado fisioterapeuta Ricardo Sasaki. Em 2023, cortou o médico Tadeu Moreno e afastou do dia a dia o médico José Sanchez, outra figura histórica.

Ainda em 2023, o São Paulo anunciou com pompa uma cooperação científica com a USP (Universidade de São Paulo), que criaria protocolos de preparação física, fisiologia e fisioterapia. Duas fontes do clube dizem que a parceria não passou de duas visitas de pesquisadores ao CT.

"Tivemos o início de trabalho, mas entendemos, após avaliação do DEM, que deveríamos traçar outros caminhos. Atualmente temos parceria com a Escola Paulista de Medicina, o convênio específico para cobertura de atendimentos no Einstein e estamos fechando outras parcerias", diz Carlomagno.

A crise se aprofundou, e o que aconteceu em 2025 - 70 desfalques - é sem precedentes, mas a recuperação do histórico mostra um departamento em crise há pelo menos quatro anos.

Uol
https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2025/12/12/racha-e-canetas-emagrecedoras-os-bastidores-da-crise-do-dm-no-sao-paulo.htm