Política Democrática | Sonia Rodrigues - O filho de mil homens

Política Democrática | Sonia Rodrigues - O filho de mil homens

Sonia Rodrigues é escritora e roteirista, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio com o tema Roleplaying Game. A segunda coisa que mais gosta na vida é contar histórias, escutar histórias, colaborar com outros contadores de histórias. A primeira coisa é gente. Gente que gosta de amar.

Daniel Rezende, que já provou seu talento como montador em cinema, como diretor no cinema adulto e no cinema infantil, agora se volta para o cinema de adaptação, de um livro que tem uma estrutura, digamos assim, desafiadora.

O livro de Walter Hugo Mãe.

O livro é lindo, sensível, comovente e difícil de ler como um livro de Saramago. O tipo de obra que se lê indo e voltando para não perder o sentido do que foi lido na página anterior. Roland Barthes definiu que existem textos de fruição e textos de prazer. Nos primeiros, existe a encenação da língua, a subversão dos códigos. No texto de prazer, o principal é acompanhar e desvendar as peripécias, os encaixes da narrativa, a emoção. Shakespeare, Dickens, Nelson Rodrigues em A vida como ela é são textos de prazer. O texto de prazer não é menor, haja vista os autores citados, mas, com certeza, é mais fácil de ser lido. Em geral, o protagonista, a premissa, o conflito, o contexto aparecem logo.

No texto de prazer, a narrativa é linear, ou, no máximo, de alternância. No audiovisual, esse tipo de obra é mais comum nos filmes de ação, suspense e nas séries televisivas. Quanto mais linear uma obra, maior audiência.
Nenhuma relação com o livro do Walter Hugo Mãe, o que demonstra a coragem do Daniel Rezende em adaptar essa obra. Como foi que ele transformou um livro de fruição em um filme quase de peripécias, quase de prazer? Traduzindo a temática em imagens poderosas, em diálogos curtos, em personagens super humanos. Super no sentido real da palavra. Muito além da medida que conseguimos ver. Cruéis, canalhas, violentos além do que costumamos admitir que existam. O mais interessante é que o filme mostra rapidamente a extrema crueldade. Não se detém nela.

O filme está concentrado, desde o início em Crisóstomo, o pescador que tem como filho um boneco de retrós, grita na beira do mar o que não consegue conversar com os humanos que o rodeiam.

Na comunidade pobre de pescadores, ele é discriminado por todos. Outro é considerado escória porque pinta as unhas. Uma anã é censurada por, de vez em quando, receber homens quando quer algum afeto. A mãe de uma moça tímida embute na cabeça da filha que as mulheres têm uma ferida entre as pernas e não devem escrever, apenas cozinhar e obedecer ao marido. Esse conceito esdrúxulo leva a filha a obedecer ao noivo com consequências amargas (para ela).

No decorrer do filme, o painel é o de punição a tudo o que se relaciona com sexo, em especial o sexo considerado "anormal". São as mulheres que ganham o prêmio de opressão. A outras mulheres. Ao filho que gosta de homens.
Caso Walter Hugo Mãe e Daniel Rezende fossem autores trágicos, o livro seria mais difícil de ler, e o filme, bem difícil de assistir. Não são. E os personagens - magnificamente defendidos por Rodrigo Santoro, Johnny Massaro e Rebeca Jamir - também são personagens solares. Sobrevivem à crueldade humana sem tentar retaliar numa guerra inútil onde sairiam destruídos.

A mãe cruel, o avô preconceituoso, a vizinha que propõe castigo físico, a mãe que maltrata a própria garganta: todos são apresentados sem condescendência e sem tentar ganhar o espectador para alguma justificativa do tipo "eles são assim, porque foram ensinados a ser assim ou porque são pobres ou porque também são oprimidos". O filme conta uma história, não se constrói como um panfleto edificante querendo mostrar consciência política correta.

Precisei assistir ao filme duas vezes para perceber que os dois personagens masculinos são bastardos. Deve ter sido por alguma falha na recepção. Quando se aprende em casa a transformar o estigma em honraria - "podemos ser piores, mas não somos iguais a ninguém" - o destaque passa a ser notar a infâmia com que os "caretas" tratam as mulheres libertárias. É como se os homens casados e as mulheres solteiras fossem seduzidas, inocentes, pelas figuras do Mal.

Entre os dois bastardos, um conheceu a mãe e foi influenciado por ela. Nenhum dos dois sabe quem foi o pai. No entanto, o papel real do pai está muito bem apresentado no filme. Quando o menino faz menção de responder às grosseiras contra o "maricas", o pai o contém. Como sabem todos os que já foram discriminados pelo "pequeno poder", não adianta retaliar contra a maldade nossa de cada dia. Ainda mais quando se é bastardo, categoria até hoje execrada por todos os arautos da moral e dos bons costumes.

No entanto, o filho gay reage. No final, é verdade, mas reage. A mãe e a faca são das imagens mais fortes que já assisti no cinema.

Aliás, uma grande qualidade do filme é garantir que as histórias sejam contadas por imagens. Talvez a melhor seja a do filho da caverna chorando frente à mulher pendurada como uma boneca de pano. Lembra Malena, filme italiano de Guiseppe Tornatore. Lembra A filha de Ryan, de David Lean. Mas o filme brasileiro é melhor, é maior, porque o drama não se passa na guerra onde seres humanos agem pior do que os bichos. Não. O filho de mil homens é um filme solar sobre o Mal que nos habita no cotidiano, simples. Isso se chama Arte.

Causa estranheza que O filho de mil homens tenha sido preterido na indicação brasileira para o Oscar. Um filme que traz no drama a misoginia, a homofobia, a opressão contra o considerado desviante. Talvez tenha faltado lobby ou faltado identificação. No júri, quem sabe, não existia nenhum gay, nenhuma lésbica, nenhuma mulher libertária que tenha sido vilipendiada. Ou nenhum bastardo.

fap
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