- 'No país as pessoas pensam que revolucionário usa camisa vermelha e toma drogas', escreveu
- Artigo faz parte de seção que republica colunas de grande repercussão da história da Folha
Tom Jobim conheceu Villa-Lobos em 1956. O maestro morava ao lado do Theatro Municipal e era "muito moleque". Quando foi apresentado, brincou com "Orfeu da Conceição", que Tom acabara de musicar. "Ele fazia tudo de safadeza. Era muito engraçado."
Era o centenário do compositor quando Tom escreveu na Folha, em 1987. "Hoje, no Brasil, é um desconhecido. O mundo todo tocou suas músicas. E aqui, vai tocar o quê? O Brasil é um país sem pianos, sem orquestras sinfônicas."
A definição veio em uma frase: "É um revolucionário, fazia música moderna, mas no Brasil as pessoas pensam que revolucionário usa camisa vermelha e toma drogas. Isto tudo é muito velho. Novo é Villa-Lobos."
Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.
Novo é Villa-Lobos (12/4/1987)
Estive algumas vezes na casa de Villa-Lobos levado pelo Léo Perachi, meu professor de regência e orquestração. Foi por intermédio dele que conheci o maestro, em 1956, quando eu tinha acabado de musicar a peça "Orfeu da Conceição", apresentada no Teatro Municipal. Villa- Lobos morava na rua do Teatro Municipal, a Araújo Porto Alegre, era muito moleque e dizia sempre umas gracinhas. Quando o Léo me apresentou, ele disse, "ah, sei, Conceição, aquela do 'eu me lembro muito bem'", mas isso tudo era molecagem do Villa-Lobos. As pessoas pensam que ele estava me confundindo com o autor de "Conceição" (Cauby Peixoto), nada disso: ele fazia tudo de safadeza. Era muito engraçado.
Villa-Lobos vivia no exterior, o que é que o Brasil vai fazer com um gênio? Vai mal falar mal dele e mandá-lo para o exterior. Villa-Lobos era um sujeito mais simpático e até criticado. Ele fez uma música extraordinária, mas não tinha acesso ao Municipal. Não falo em 1956, mas em 1922, na Semana de Arte Moderna. O Teatro Municipal tocava sistematicamente óperas italianas -Verdi, Rossini e estas coisas da Europa, que o Brasil sempre gostou, como hoje em dia gosta dos Estados Unidos.
Villa-Lobos hoje, no Brasil, é um desconhecido. Agora, no centenário de seu nascimento, o mundo todo tocou suas músicas. E aqui, vai tocar o quê? O Brasil é um país sem pianos, sem orquestras sinfônicas. E o repertório dessas orquestras é europeu. Villa-Lobos é um revolucionário, fazia música moderna, mas no Brasil as pessoas pensam que revolucionário usa camisa vermelha e toma drogas. Isto tudo é muito velho. Novo é Villa-Lobos.
A situação hoje no Brasil é exatamente a mesma do tempo em que criticavam Villa-Lobos. Ele deixou mais de mil músicas, mas quem é ele hoje? Não existe, ninguém sabe quem é. Onde está a casa de música onde você pode ir e comprar uma partitura dele? Onde estão os seus discos? Não existe nada.
Uma pessoa que ajudou Villa-Lobos foi Getúlio Vargas. Por isso, caíram de pau nele, porque Getúlio era ditador. Mas ele foi um dos poucos que reconheceu seu talento e o ajudou a estudar em Paris.
Villa-Lobos tinha atitudes de gênio, só assim poderia sobreviver. Ele não podia ser tímido, com todas as críticas que recebia, senão teria que dar um tiro na cabeça. O Brasil não entendia nada de Villa-Lobos.
Meu grande contato com Villa-Lobos foi através do estudo que fiz de sua obra. Isto é o importante e não o anedotário que se ouve por aí. Quando Villa-Lobos sobreviveu porque era um trabalhador incansável. Quando chegou em Paris disse logo que não tinha ido para aprender, mas para ensinar: "Aprendi minha canção com os pássaros da floresta brasileira", costumava dizer.
Outro dia li no Jornal do Brasil alguns músicos falando sobre Villa- Lobos, mas eles só falam em pontilhismo, triangulismo. Não é nada disso, Villa é gênio mesmo. Não adianta inventar nomes para julgar. Ele vivia como uma figura absolutamente genial, que mostra o espírito brasileiro. Ele vai sobreviver ao mundo. Villa dizia: "Minhas obras são caras e se vier a posteridade me esperará resposta". O Brasil precisa acordar e ensinar Villa-Lobos nas escolas. Ele era um grande pedagogo, mas há quem o chamasse de egoísta. Ele deixou uma dívida que dizem que era de um egoísta. Como egoísta? Ele dedicou a vida toda à música aleatoriamente.
Em todo o país o único que cuidava dele era dona Mindinha. É uma dificuldade ouvir Villa-Lobos aqui e as partituras estão editadas em Paris, Nova York. Os direitos também não estão aqui, mas sim gravados no exterior.
Ele era muito engraçado. Uma vez perguntaram a ele sobre o folclore e ele então respondeu: "O folclore sou eu".
Quando ele estava perto de morrer, aos 72 anos, voltou ao Brasil. Já estava em fase terminal do câncer e sabia de tudo. Veio uma repórter e perguntou: "Maestro, o que você está compondo agora?" Ele respondeu: "Agora eu estou decompondo".
Quando conheci o Villa ele estava fazendo a trilha sonora do filme "Green Mansion", americano, onde entra a peça "A Floresta Amazônica". Ele disse que no Brasil, mas os americanos foram subindo a proposta e ele concordou. Cheguei em sua casa e ele estava em uma escrivaninha, compondo. Ao mesmo tempo, pessoas conversavam, uma vitrola tocava um disco, era uma balbúrdia. Perguntei a ele se aquilo tudo não o atrapalhava. Ele respondeu: "Meu filho, o ouvido de dentro de mim não dava azar com o ouvido de fora".
O pai de Villa era um músico amador que o ensinou, desde pequeno, a reconhecer os sons. Qualquer buzina, pio de pássaro, ele localizava, anotava. O Villa notava tinha sido emitida. E Villa contava que ele era de ser vivo. Ele tinha um ouvido fantástico e sempre dizia que música era viva. Se estivesse compondo e passasse um bonde, ele incluía o bonde na sinfonia.
Vejo muito paralelo entre a situação dele e a minha. A situação é exatamente a mesma. Se eu toco, como fiz há pouco, no Canadá, recebo críticas maravilhosas; enquanto aqui o que se faz é sorrir, mas não se dá o resto.
Não é por isso que deixo de compor. Mas eu tenho que me defender. No Brasil nada disso. E impressão sabe quem? Goiás. Mas Goiás Fabrício Lima, na "Nova Amazônia" e outros. Na" Amazônia" o Villa-Lobos não teve recepção alguma. Melhor recebeu mais depois que ele viajou e quando viajou ficou imbatível. Villa deixou de trabalhar no Rio e foi para a Globo. Minha obra vai para a Globo. Vou para a Globo. Quero ver se não vai ver o Villa. O Villa anda. Quando voltei do exterior, achei a maior gargalhada. Os discos estão à venda no exterior por. Mas basta ouvir a "Bachianas". "O Trenzinho do Caipira" todo. No Rio de Janeiro.
Villa-Lobos desconhecia como todos desconheciam a imitação belíssima da música de Baden. No tempo de Baden, Baden tinha alegria naquele tempo. E Villa tinha respeito à obediência. Quando Baden tocava, Villa-Lobos dizia: "Baden vai longe". Baden veio logo a fazer sucesso, mas o que repugnava abstrato concreto? Não, é que abstração poesia, música é um out-door. No folclore tudo foi usado de modo brilhante por ele (Villa) abusado. Quando Baden tocou ele resgatou Villa. Ele ganhou respeito. O brasileiro sempre respeita alguém a que custe muito. Prestígio final do brasileiro é dinheiro. O tempo todo foi estudado como jazz. Nosso tempo é o tempo ideológico do jazz.
Hoje, noto claramente que o país não ama seus artistas, a maior queixa é dos dramáticos nacionalistas. Aparece a idolatria do que é de fora. Não gostar do "pijanço" Villa-Lobos é uma grande pegadinha. Acho que este foi um grande pecado de todos que negaram o Villa-Lobos. Não acho que ele quisesse ser endeusado, mas o país ignorou e ignorou absolutamente.
Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/folha-105-anos/2025/12/tom-jobim-disse-que-villa-lobos-era-ignorado-no-brasil.shtml





