Por Danilo Casaletti

Há ideias e assuntos que estão no ar. Por vezes, eles são captados por mais de uma pessoa. A série ficcional brasileira Os Donos do Jogo, que estreia na Netflix no dia 29, aborda, em oito episódios, a máfia carioca do jogo do bicho - e como a contravenção tem ampliado seus tentáculos de poder nas últimas duas décadas. Mesmo tema de Vale o Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho, documentário do Globoplay que entrou em catálogo em 2023.

Anunciada como a 'primeira série de máfia brasileira' da Netflix, Os Donos do Jogo já tinha o green light, ou seja, o OK final para entrar em produção, quando o diretor e produtor da série, Heitor Dhalia, o mesmo de DNA do Crime e O Jogo Que Mudou a História, marcou um jantar com o jornalista Pedro Bial, supervisor de Vale o Escrito.

"Bial me disse: 'Vou lançar um documentário sobre contravenção. Você vai querer fazer uma série de ficção sobre isso, com certeza'. Eu disse a ele: Eu já estou fazendo!", recorda, sobre a coincidência. "O Vale o Escrito foi um termômetro de que havia um grande interesse nesse universo. Não estávamos 'viajando'", completa Dhalia.

Os Donos do Jogo vai fundo no tema. Além da máfia do jogo do bicho e sua relação com o carnaval, aborda as máquinas caça-níquel, as bets associadas ao futebol, as criptos moedas e os ganhos do mercado financeiro e a influência da contravenção na política. Tudo isso entranhado na alta sociedade. "Nosso foco é a ficção, mas temos respeito ao universo que retratamos e tentamos ser fiel a ele, mas sem julgar. Não apontamos o dedo, somos contra isso, inclusive", afirma Dhalia.

A série se propõe, por meio da dramatização, mostrar como a mudança de gerações dentro da contravenção também gerou transformações nas práticas criminosas, elevando a contravenção carioca a um outro patamar, como explica o produtor Manoel Rangel, da produtora Paranoid. A guerra entre as famílias do crime é um dos pilares da trama, em um história de ciúme, amor, lealdade, traição e ambição.

"Há novos códigos sendo construídos. Temos, de alguma maneira, um convívio com o jogo do bicho, mas não conhecemos esse código ou como se transita no meio. O que oferecemos, então, é uma possibilidade, que entendemos muito verossímil, como nossas pesquisas nos mostraram, mas inteiramente ficcional, que ajuda a preencher a curiosidade do público", afirma Rangel.

"A cidade não para por conta das guerras entre esses contraventores. A cidade sequer percebe que essas guerras ocorrem, mas elas existem. Isso é próprio do código e permite com que pessoas circulem com muita desenvoltura pela sociedade. Há, aí, bons personagens que nos inspiraram", diz o produtor.

A trama de 'Os Donos do Jogo'

O ponto de partida de Os Donos do Jogo é o jovem Jefferson Moraes, vulgo Profeta, interpretado pelo ator carioca André Lamoglia, conhecido por fazer parte do elenco da série espanhola Elite, produzida pela Netflix entre 2008 e 2024. Ligado a uma família de bicheiros de Campos de Goytacazes, no interior do Rio, Profeta migra para capital fluminense a fim de expandir os negócios.

"Quando o Profeta chega ao Rio de Janeiro e vê que não é tão simples sentar na mesa da cúpula [da contravenção,] ele se adapta e passa a fazer coisas que não esperava. Isso afeta sua maneira de agir. Ele muda de personalidade", diz Lamoglia sobre seu personagem.

Para conseguir atingir seu objetivo, Profeta precisa minar nos núcleos que controlam os jogos de azar na cidade, que são organizados como uma máfia. Um deles é o da família Guerra. Com o patriarca doente, o comando vai para as mãos de Búfalo, ex-segurança da família, um sujeito explosivo e violento interpretado pelo rapper e ator Xamã, que se casa com uma das filhas de Guerra, Suzana, personagem de Giullia Buscacio.

Um contraponto cativante apresentado pela série está entre Profeta e Búfalo. Enquanto o primeiro, como o apelido indica, é um estrategista, o segundo, um ex-lutador de MMA, é passional, capaz de matar um inimigo no soco.

"Tudo o que o Búfalo resolveu na vida foi no punho. Ele pensa com os punhos. É um jogo de razão e emoção", diz Xamã, que se sai muito bem no papel. "As questões dele são psicológicas, sobre como ele perdeu a carreira de lutador e como ele foi parar em uma máfia carioca", completa.

"O curioso é que são personagens com características muito diferentes, mas com o mesmo objetivo: conquistar o poder. A série traz uma disputa familiar e a importância de cada um dentro desse universo", explica Lamoglia.

Profeta também vai avançar na liderança exercida por Galego Fernandez (Chico Diaz), empresário influente que se torna um dos chefes do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Para isso, se alia à outra personagem da família Guerra, Mirna (Mel Maia). Quem o orienta nessa empreitada é Leila (Juliana Paes), mulher de Galego.

Há dois motivos para Leila querer atingir o próprio marido - um bastante racional e outro com contornos passionais. A ligação entre Leila e Profeta é um dos segredos da série, revelado no terceiro episódio.


"Como uma mulher ousa desejar um lugar na cúpula do crime, dentro desse patriarcado? Ela não só deseja, mas mexe todos os pauzinhos para chegar lá. Se uma mulher não pode [assumir a liderança], ela pode usar outras pessoas para fazer isso por ela, sobretudo os homens", explica Juliana, sobre a movimentação de peças que ela faz ao trazer Profeta para seu grande jogo.

Leila se difere de outra criminosa famosa que Juliana interpretou, Bibi Perigosa, da novela A Força do Querer, de 2017. Bibi foi movida pela paixão pelo marido, um traficante chefe de facção. Já Leila é calculista e tem objetivos claros. "Nesse sentido, ela é muito mais poderosa do que a Bibi. Além disso, tem muita frieza, perspicácia e inteligência", diz a atriz.

Diaz, intérprete de Galego, afirma que Leila é "muito apaixonada pelo marido", mas é ainda mais fascinada pelo poder. "Há algo de shakespeariano no Galego e na estrutura de poder do jogo do bicho, no controle da população e nos métodos utilizados", diz o ator, que imprimiu um carioquice bastante característica ao personagem.

A força das mulheres

Os Donos do Jogo é um grande jogo de tabuleiro. E as mulheres têm posições decisivas nele. Se Leila é a grande dama, Mirna joga de forma aberta e impulsiva. Suzana, articulada, se movimenta de forma mais maliciosa.

Elas ainda têm influência direta nos homens. Se Búfalo só consegue resolver tudo no soco, a mulher, Suzana, se torna o cérebro dele. Quando Profeta quer colocar desejo na frente dos 'negócios', Mirna faz questão de afirmar que seu único interesse é ascender no controle da máfia carioca.

Giullia Buscacio, a intérprete de Suzana, afirma que não desejou construir uma criminosa para a série, mas sim pensar que sua personagem tem total direito a ficar com a 'herança' da família, a partir do afastamento do pai do comando da contravenção.

"Parti de um sentimento de injustiça: Por que não posso herdar algo que é meu de direito? Não posso assumir? É pelo fato de ser uma mulher?", questiona.

Entre as irmãs Suzana e Mirna há um sentimento de amor e ódio. Ao se aliar com Profeta, Mirna atinge Búfalo, e, consequentemente, a irmã. "Elas são a alma do negócio. Sem elas, o bicho não anda", diz Mel Maia.

Mirna é a primeira personagem adulta de Mel, de 21 anos - ela começou a carreira na TV aos 5 anos e se destacou aos 7, ao interpretar Rita na primeira fase do estrondoso sucesso Avenida Brasil, novela exibida em 2012.

"Tentei buscar dentro de mim aspectos que tenho agora de uma mulher adulta. Usei essa minha virada de chave para levar para a personagem. A Mirna vem muito de mim", diz.

Uma máfia tropical para o mundo

Os Donos do Jogo tem texto atraente e corajoso. São nos diálogos que tudo se desenrola, onde são expressadas as mais bárbaras violências. Há ainda inúmeras tiradas que aliviam o drama da história, como "quem vive do suor dos outros é sauna" ou "o tempo corre como um mangalarga e você está em cima de um pangaré". Aliado a uma produção grandiosa, com 95 personagens, torna-se um produto interessante tanto em termos de dramaturgia, quanto de formato.

Em uma vitrine mundial com a Netflix, a expectativa é que essa história de máfia tropical, e bastante carioca, conquiste a audiência de outros públicos, assim como ocorre com DNA do Crime - a série será distribuída para 190 países.

"Usando uma expressão local, o Rio de Janeiro que apresentamos é um esculacho. Mas, acreditamos que, a partir dos elementos universais da dramaturgia, qualquer espectador, em qualquer parte do mundo, tem plena possibilidade de acesso a essa história", afirma o produtor Manoel Rangel.

"A série tem temas gerais, como casamento falido, irmãs que disputam herança e um forasteiro que chega para disputar o trono - só que todos, nesse caso, são contraventores. Essa é a graça. E, por ser no Rio de Janeiro, ajuda ainda mais a encontrar outras audiências", diz Dhalia.

Estadão
https://www.estadao.com.br/cultura/series/os-donos-do-jogo-na-netflix-retrata-a-mafia-brasileira-do-jogo-do-bicho-e-seus-tentaculos