Adriana Ferraz e Juliana Sayuri
A gestão Ricardo Nunes (MDB) abriu uma investigação interna para apurar se o Jockey Club de São Paulo desviou recursos captados com o aval do município para custear obras de restauração.
São R$ 61,2 milhões em análise.
O valor é relativo a transações financeiras efetuadas pelo hipódromo paulistano a partir de um mecanismo urbanístico chamado TDC (Transferência do Direito de Construir).
Idealizado para viabilizar a preservação de bens de interesse histórico e ambiental, o TDC permite aos proprietários de um imóvel tombado negociar no mercado títulos imobiliários referentes à área preservada como uma espécie de recompensa ou indenização.
Segundo dados obtidos pela reportagem via LAI (Lei de Acesso à Informação), o Jockey lançou mão do instrumento cinco vezes entre 2018 e 2024, transferindo, no total, 127 mil m² de seu potencial construtivo -36% a que tem direito- e arrecadando R$ 61.245.015,76.
Com 586 mil m² de área tombada, o TDC total do hipódromo paulistano é de 351,9 mil m² . O saldo, portanto, ainda pode ser colocado à venda.
A verba arrecadada precisa ser obrigatoriamente usada no "atendimento às providências relativas à conservação do imóvel", conforme preveem o Estatuto das Cidades e o Plano Diretor do Município, de 2014.
A investigação aberta pela prefeitura pretende checar se os recursos captados foram desviados de sua função e usados, por exemplo, para pagar dívidas, apurou o UOL.
Em balanços oficiais publicados na internet, a direção do Jockey já tratou o TDC como receita extra para "sustentação do caixa".
Além disso, em seu site oficial, o Jockey informa que o projeto de restauro em andamento desde junho de 2019 é financiado a partir de incentivos da Lei Rouanet.
A última captação foi autorizada pelo Ministério da Cultura em março de 2024, no valor de R$ 48,3 milhões, para a restauração do prédio da tribuna social.
Procurada, a direção do Jockey afirmou que já prestou todas as informações requisitadas e que os recursos utilizados para o restauro são devidamente auditados e fiscalizados pelas autoridades responsáveis.

Caixas de notas fiscais
Aberta em meados de julho, a investigação é conduzida pelo DPH (Departamento de Patrimônio Histórico). Na semana passada, o órgão recebeu caixas de documentos com notas fiscais.O material é analisado agora por auditores fiscais da prefeitura.
Os comprovantes solicitados devem comprovar a utilização dos valores obtidos via TDCs em projeto e obra de restauro dos elementos protegidos pela resolução 5/2013 do Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), que oficializou o tombamento.
Para ter direito ao instrumento, os responsáveis pelo bem protegido têm de firmar um termo de compromisso com todos os restauros previstos. E é esse planejamento que agora está sob auditoria.
Em uma segunda etapa da investigação, a prefeitura ainda pretende checar se há duplicidade entre as notas fiscais relativas ao TDC e à Lei Rouanet.
A suspeita é que o mesmo plano de trabalho tenha sido apresentado ao DPH e ao Ministério da Cultura.
Em 2021, o Jockey captou R$ 5,6 milhões para promover o restauro dos murais dos artistas Victor Brecheret e Bernard Dunand. Serviço que já havia sido listado no termo de compromisso firmado com a prefeitura.
A direção do hipódromo paulistano pode ser multada ou proibida de fazer novas negociações no mercado, caso o desvio de finalidade seja comprovado.
O artigo 26 da Lei de Zoneamento ainda prevê a devolução em dobro e corrigida do valor correspondente ao TDC já executado.
O hipódromo não quis detalhar quais objetivos do plano de restauro foram cumpridos.
Em nota, informou que o "documento mencionado foi produzido há mais de uma década, em outro contexto, por pessoas que há muitos anos não fazem mais parte da administração do Jockey".

Desapropriação e novo parque
A gestão Nunes considera a comprovação de eventuais irregularidades como prejuízo aos cofres municipais, apesar de as transações não envolverem recurso público.Isso porque ao dar aval para donos de imóveis tombados negociarem TDCs no mercado, a prefeitura abre mão do valor que seria pago pelas novas construções em outorga onerosa -taxa cobrada de quem quer edificar acima do limite permitido por lei.
Para a equipe de Nunes, o Jockey não deveria ter direito aos benefícios do TDC em função das dívidas milionárias que mantém com a administração há décadas.
A prefeitura argumenta que o valor alcança R$ 830 milhões em lançamentos de IPTU e ISS não quitados.
Contestado pela direção do hipódromo, o montante é um dos argumentos para a gestão Nunes concretizar o processo de desapropriação da área para transformá-la em parque -a base aliada do prefeito na Câmara Municipal debate uma lei neste sentido.
O plano é usar um outro instrumento no processo, a dação em pagamento, no qual o poder público "desconta" da dívida o valor a ser pago na desapropriação, avaliada em R$ 95 milhões.
Desse modo, o saldo a favor do município ainda seria superior a R$ 700 milhões.
Sobre a dívida, o Jockey afirmou, em nota, que busca há anos uma "solução justa e transparente sobre os valores devidos de IPTU, que vêm sendo cobrados sem critérios claros ou respaldo legal adequado".
"Por duas vezes, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou que o município revise e recalcule os valores cobrados, conforme prevê a legislação vigente. Lamentavelmente, a prefeitura insiste em descumprir tais decisões judiciais, ferindo a ordem legal e perpetuando uma narrativa equivocada de inadimplência."
Uol
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/08/14/prefeitura-de-sp-investiga-se-jockey-desviou-r-61-mi-destinados-a-restauro.htm