O bilionário, que prometeu entregar 60% de sua fortuna para a caridade, fala de sua decepção com o poder público
Por Airton Seligman
Aos 81 anos, Elie Horn, fundador da Cyrela, uma das maiores construtoras do país, tem a dicção afetada pela doença de Parkinson. Ainda que as palavras não saiam redondas, o empresário tem muito a dizer. Entusiasta da filantropia, Horn criou o Movimento Bem Maior e o Instituto Liberta, entre outras iniciativas sociais. Primeiro e único brasileiro signatário do The Giving Pledge, movimento de bilionários criado em 2010 por Bill Gates e Warren Buffett para incentivar doações de grandes fortunas para a caridade, Horn tem um jeito próprio de ver a vida. Espiritualizado, bem-humorado, por vezes emotivo, fala da sua dedicação a causas sociais com grande sinceridade e autocrítica, como nesta entrevista a VEJA. "Sou capitalista; quero ganhar muito dinheiro para doar mais ainda", diz Horn. Imigrante sírio, começou na infância vendendo goma-laca para ajudar os pais. Hoje, é dono de estimados 3 bilhões de reais e de convicções humanísticas inabaláveis. Deixou o comando da empresa em 2012 para cuidar da saúde e, pouco depois, anunciou que doaria 60% de sua fortuna à filantropia. "Se eu fosse mais idealista, faria mais. Ainda preciso evoluir."
Quanto tempo por dia o senhor gasta com caridade? De alguns anos para cá, ocupo 70% do meu tempo trabalhando nessa atividade. O restante gasto com ginástica e massagem. É obrigatório por causa da doença de Parkinson. Gasto de três a quatro horas por dia tomando conta do corpo. Como não tomei conta por quarenta anos, estou pagando com juros.
O senhor sempre trabalhou muito? Sempre. Acho que minha condição atual é uma das "vinganças" da vida, uma lembrança de que trabalhei demais. E de que agora preciso ter mais tempo para fazer o bem.
Como o senhor avalia a economia brasileira, que cresce pouco e não consegue debelar a desigualdade social? Eu sou capitalista. Quero ganhar muito dinheiro para doar mais ainda. Essa é a minha resposta. É preciso ganhar dinheiro para poder ajudar.
Quem se dedica à filantropia no Brasil precisaria de uma contrapartida do governo para ajudar ainda mais? O senhor defende incentivos fiscais para doadores? Eu queria maior participação do governo. Mas não sou ingênuo. Adianta querer? Então sigo adiante. Faz uns seis anos, eu tentei via Brasília, via Presidência, fazer o bem. Desisti após dois anos de trabalho. Governo não resolve nada. Todas as conversas que tive com políticos brasileiros nos últimos anos foram absoluta perda de tempo.
Mesmo com sua posição e sendo tão conhecido? Eu não sou um homem de relacionamento. Onde sou conhecido? Só no nível social. E em muitos casos por ganhar dinheiro.
O senhor não tem amigos, conhecidos? Tinha amigos de muitos anos. Mas, quando você casa, deixa de ter amigos. O casamento desafia a continuidade dessa fraternidade. A idade também. A sociedade também.
O senhor sente os efeitos do antissemitismo, que vem crescendo nos últimos anos? Eu não senti. Até agora, nunca senti. Já teve alguém que me xingou por ser empresário, mas não por ser judeu. Como não sou político, não sou alvo para ninguém.
"Não sou ingênuo. Governo não resolve nada. Adianta querer ajuda? Todas as conversas que tive com políticos brasileiros nos últimos anos foram absoluta perda de tempo"
Do que o senhor mais sente falta na vida? Sinto falta de correr, de andar no parque, de ver a beleza da natureza. Me sinto mal quando vou fazer xixi e tenho de ser acompanhado até o banheiro. Me sinto mal quando estou limitado. Por outro lado, faz parte do meu destino. Então, calo a boca e não reclamo. A vida é um aprendizado contínuo. Se Deus mandou, é porque eu mereço.
De que forma a sua espiritualidade influiu em seus negócios? Um exemplo: um interessado chegou para comprar um apartamento, mas eu tinha dado opção para outra pessoa. Dois meses depois ele voltou para ver o apartamento, ainda à venda. A concorrência vendia pelo dobro do preço. Mas eu mantive o valor inicial. Respeitar a palavra, não quebrar contratos, não ser mentiroso ou sem-vergonha. Isso é trabalhar com espiritualidade.
Qual o melhor argumento para convencer outros bilionários brasileiros a doar suas fortunas para filantropia? O primeiro: ajuda social não é ajuda. É soma social. Porque parto do princípio de que, quanto mais você dá, mais recebe. Tendo um Deus com justiça, no fim tudo se equilibra. Ponto dois: faz bem fazer o bem. Quando alguém vai morrer, ele vai pensar no bem que ele fez ou não fez. Então, em vez de esperar morrer para pensar direito, vamos fazer isso em vida. Isso é muito importante. Quando fico doente, eu faço essa conta. A conclusão a que cheguei é: o que eu posso fazer mais?
O senhor tem convencido os bilionários brasileiros com esses argumentos? Se não tem, por que é difícil fazê-los pensar mais em caridade? Eu tenho tentado convencê-los. Bilionários, não consegui. Tentei dez ou quinze vezes. Mas consegui incentivar construtoras a doar mais. Bilionários não me deram alento para poder convencê-los.
Por que o senhor não conseguiu convencê-los? Não vou falar mal de ninguém por uma questão de princípio de vida. Eles não estavam convictos o bastante para poder fazer esse ato. A visão deles, nesse sentido, não foi completa.
Falta o que exatamente? Falta se convencerem de que o dinheiro que pagam para caridade não é dinheiro jogado fora. Não é despesa. É poupança. Você pode fazer uma caderneta de poupança, mas por que não fazer uma poupança no bem? O que é o bem? É uma moeda transferível entre um país e outro, entre a Terra e o céu.
O que explica a diferença entre os bilionários brasileiros e os americanos na adesão à filantropia? Conheço pouco. Mas o que sei é que a cultura anglo-saxônica é muito diferente da latina. Eles aceitam muito bem a caridade como um instrumento do bem. No Brasil, esse dado não convence, não existe.
Nós não temos uma cultura de doação? Me dá a impressão de que é uma herança latina mal digerida. Mal concebida. Mal pensada.
Mas temos uma tradição cristã que prega fazer o bem ao próximo. Mas não prega ficar rico. Para você doar, precisa ter dinheiro. Não posso doar se não tiver dinheiro.
Ser signatário do The Giving Pledge mudou alguma coisa na maneira de o senhor pensar na caridade? Mudou na maneira de viver. Eu achava que era bom. Quando me comparo aos outros signatários da iniciativa, acho que sou péssimo. Por quê? Porque lá todo mundo dá 95%, 98%, 99% do que ganhou. Eu dou 60% e acho muito - acho entre aspas. Já não acho mais. O exemplo é que está errado. Eu considero, no Brasil, o Amador Aguiar (banqueiro, fundador do Bradesco, falecido em 1991) um grande benfeitor. Ele fez uma escola que já formou 500 000 crianças (por meio da Fundação Bradesco). No Brasil, o maior filantropo é o Amador Aguiar. Depois não tem número 2.
O senhor também é um dos maiores filantropos do país. O senhor se vê como inspiração para outros super-ricos doarem suas fortunas? Não me vejo.
Por quê? Ser vaidoso faz muito mal na vida. É muito tênue a linha entre a vaidade e a verdade.
Paula Fabiani, presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), contou que ela, José Luiz Setubal (acionista do Itaú) e o senhor tentaram trazer o The Giving Pledge para o Brasil. Por que não deu certo? Para o senhor Bill Gates e para o senhor Warren Buffett, o Brasil é uma gota no oceano. Não vale a pena se mover por causa de nosso país.
"Gasto de três a quatro horas por dia tomando conta do corpo. Como não tomei conta por quarenta anos, agora estou pagando com juros. Faz parte do meu destino. Então calo a boca e não reclamo"
Não teria sido por dificuldade de congregar brasileiros para levar adiante a proposta do "clube" de pessoas que doam a maior parte de suas fortunas em vida? Nunca se trabalhou isso a sério nesse sentido. Eu cheguei a falar com a pessoa de lá. Eles não podem obrigar ninguém a se filiar aqui. Mas podem pedir para ir até lá se alguém se interessar.
Por que não quiseram vir para cá? Não há um volume de riqueza nas mãos de indivíduos ou famílias? Não tem volume. No mundo, tem muito mais bilionários que estão dispostos a doar do que no Brasil. Então vão atender primeiro os maiores doadores e depois chegar até os que doam menos. Isso é lógico.
O senhor consegue colocar em palavras a sensação de prazer de doar? Doar é um prazer com conteúdo. Um real salva uma vida, uma camisa nova não salva ninguém. Então, o prazer (de doar) é intelectual, muito refinado. Se você pensar bem e ajudar uma criança a não morrer, a mãe vai te agradecer quanto? Bilhões de vezes. O pai, bilhões de vezes. A sociedade, bilhões. Quando você usa uma camisa nova, ninguém vai falar nada. Doar é um prazer duradouro, para a vida e para a eternidade. Não é um prazer egoísta, não é de farra, bebida. Todo prazer intelectual é mais refinado.
A gente poderia dizer que esse é seu maior prazer hoje? Maior prazer não posso dizer. É meu maior investimento. Maior gasto de tempo. Maior significado e propósito.
O que levou o senhor a criar o Instituto Liberta, que ajuda crianças e adolescentes em vulnerabilidade sexual? Há muito tempo, havia um jornalista do Nordeste que escreveu sobre a prostituição de menores. Li por acaso esses artigos. Faz trinta anos, talvez. Decidi naquela época também me dedicar a essa causa. Dez ou quinze anos mais tarde, a mesma causa estava mais carente de ajuda. Decidi me dedicar a ela até o fim da vida. Porque são meninas menores, são escravas, sendo estupradas, violentadas por brutos - em termos monetários e em termos humanos -, aviltando o ser humano. Dar a uma menina a condição de ser humano é defender a humanidade.
Como o senhor mede o retorno da sua benevolência? O que eu faço é para o bem. Muito bem ou pouco bem. Mal não faz. Números exatos eu não tenho. Não dá para saber.
O senhor investe em educação? Invisto em educação direta e indiretamente. Mas precisaria investir muito mais. Eu poderia ter feito muito mais. Mas não fiz. Certamente sou meio covarde, meio comodista. Preciso evoluir mais ainda.
Como o senhor vê o futuro da filantropia no Brasil? Eu sou positivo por natureza. Nunca vejo o copo vazio.
Com que confiança o senhor diz que as coisas vão melhorar? Confiando 100% em Deus.
Veja
https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/quero-ganhar-muito-dinheiro-para-doar-mais-ainda-diz-elie-horn-fundador-da-cyrela/