Papa Francisco e sua pizza de aniversário em 2017 Imagem: AFP PHOTO / OSSERVATORE ROMANO |
Fã de pizza e alfajor, papa Francisco levou política e espírito à mesa

Fã de pizza e alfajor, papa Francisco levou política e espírito à mesa

Rafael Tonon


Ao contrário do santo que lhe emprestou o nome religioso, Jorge Mario Bergoglio - ou papa Francisco - não vivia em jejuns frequentes e intensos como forma de demonstrar desapego e penitência.

Mas, assim como o homem rico que se tornou santo ao abraçar a radicalidade do Evangelho, o pontífice falecido nesta segunda-feira evitava excessos à mesa e alimentos considerados luxuosos.

Desde o início de seu pontificado, Francisco deixou claro que abriria mão dos confortos tradicionalmente associados ao cargo - algo que também se refletia em sua alimentação: suas refeições eram simples, com ingredientes frescos e sazonais.

Ao contrário de outros papas que comiam em utensílios de ouro maciço (como Bonifácio 8º) ou se refestelavam em banquetes regados a vinho, Francisco não frequentava os restaurantes romanos mais prestigiados e, muitas vezes, compartilhava as refeições no refeitório do Vaticano com os trabalhadores. Seu primeiro jantar com o Colégio de Cardeais, após ser eleito, foi um simples prato de massa - algo que ele apreciava muito. Menos era mais, na vida e à mesa do pontífice.

Seus "luxos" eram discretos: suco de laranja espremido na hora pela manhã e membrillo, a versão argentina da nossa goiabada, feita com marmelo, bastante popular em seu país natal e em partes da Europa - a tradicional marmelada.

Francisco não gostava de banquetes nem de se fartar à noite, mas sempre priorizou ingredientes de qualidade. Em linha com o que escreveu na encíclica Laudato si', onde afirma que a luta contra a injustiça começa pela terra, pela água, pela agricultura e pela alimentação, os alimentos servidos ao papa eram frescos e cultivados localmente.

Papa Francisco em almoço oferecido pelo Vaticano à população pobre
Papa Francisco em almoço oferecido pelo Vaticano à população pobre
Imagem: REUTERS/Remo Casilli

A maioria vinha de Castel Gandolfo, a antiga residência de verão dos papas, que inclui palácio, jardins, plantações, estufas, produção de azeite e criação de animais.

Segundo o livro "La Fattoria delle Ville Pontificie di Castel Gandolfo", publicado pelo Vaticano, são 62 hectares de áreas agrícolas, distribuídos entre hortas, pomares, vinhedos, estufas e currais.

Os alimentos produzidos ali são transportados quase diariamente para as cozinhas do Vaticano - especialmente para a Casa Santa Marta, onde o papa Francisco residiu e fazia suas refeições, e também para os refeitórios que alimentam o clero e os trabalhadores do Estado vaticano.

Francisco sempre pedia refeições leves e sem excessos. Por recomendação médica, teve de reduzir o consumo de massas e evitar alimentos picantes ou gordurosos.

Amante da pizza


Apesar disso, era um amante da gastronomia. Como bom argentino, apreciava alfajores e mate, mas era apaixonado mesmo por pizza - paixão que só cresceu com sua convivência próxima com a culinária italiana.

Chegou a celebrar seu aniversário de 81 anos com uma pizza de quatro metros de comprimento, com uma vela no centro - e convidou um grupo de crianças atendidas por uma clínica pediátrica do Vaticano para compartilhar o banquete.

Embora não pudesse frequentar as pizzarias a poucos quilômetros do Vaticano, certa vez afirmou que um de seus desejos mais humanos seria sair disfarçado e comer em uma pizzaria como qualquer pessoa comum.

Mas se ele não podia ir até a pizza, a pizza foi até ele. Em 2015, durante uma visita a Nápoles - berço da receita -, recebeu uma Margherita entregue em mãos por um pizzaiolo da cidade. O vídeo, naturalmente, viralizou.

Papa Francisco em jantar oferecido pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, em 2013
Papa Francisco em jantar oferecido pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, em 2013
Imagem: REUTERS/Osservatore Romano/Handout via Reuters

A comida como mensagem


Francisco também compreendia o poder diplomático - e sobretudo inclusivo - da comida. Em um almoço oferecido a pessoas em situação de rua em Roma, foi o menu - e não o gesto - que ganhou as manchetes.

Francisco e sua equipe decidiram servir lasanha, mas a receita não levava carne de porco. O Vaticano havia percebido que alguns dos convidados eram muçulmanos e optou por oferecer uma refeição halal.

O gesto inclusivo do papa gerou polêmica entre políticos da direita italiana, que consideraram a atitude uma dupla ofensa: não apenas pela acolhida a imigrantes, mas também por "desfigurar" uma receita clássica da culinária italiana, tradicionalmente feita com carne bovina e suína.

O recado mais poderoso


Para Francisco, comer não era apenas um ato biológico, mas um gesto espiritual e político. Na Laudato si', ele lembra que cuidar da terra e dos alimentos é também cuidar das pessoas.

Ao rejeitar a ostentação à mesa e incluir todos à sua volta - mesmo que isso significasse adaptar uma lasanha -, o papa ecoava os valores de São Francisco de Assis: humildade, empatia e uma profunda ligação com a terra e com a natureza.

Em tempos de tanta polarização, talvez tenha sido à mesa, com simplicidade, que ele também ofereceu seu recado mais poderoso: garantir que todos tenham lugar e acolhimento - até na hora da refeição.

Uol
https://www.uol.com.br/nossa/colunas/rafael-tonon/2025/04/24/fa-de-pizza-e-alfajor-papa-francisco-levou-politica-e-espirito-a-mesa.htm