O publicitário Luiz Lara, em sessão de autógrafos de seu livro 'A Alma Brasileira do Negócio', realizada na livraria da Travessa do Shopping JK Iguatemi, em São Paulo - Ronny Santos -16.out.25/Folhapress |
'Publicidade brasileira está perdendo humor e emoção', diz Luiz Lara

'Publicidade brasileira está perdendo humor e emoção', diz Luiz Lara

  • Livro retrata trajetória do setor desde que Brasil se tornou referência global, nos anos 1980, até hoje
  • Fundador da Lew'Lara vê publicitários mais preocupados com prêmios e algoritmos do que com vida real

Daniele Madureira

Dois irmãos de Farroupilha (RS) fabricavam telas de plástico para garrafões de vinho nos anos 1970. Começaram a diversificar a produção, com solados e saltos para a indústria calçadista gaúcha. Até que perceberam que poderiam lucrar mais com sapatos do que com telas para proteger garrafas. Lançaram uma sandália de plástico inspirada no modelo usado por pescadores da Riviera Francesa.

O modelo vendeu muito bem, mas só no verão; depois encalhou. Chamaram um publicitário de São Paulo, que estudou o caso e descobriu que as meninas tinham vergonha de usar sandália plástica fora da praia. Mas percebeu que o modelo poderia ir muito bem em uma novela da TV Globo que fazia sucesso na época, "Dancin' Days".

Quando calçou os pés da protagonista Júlia, vivida pela atriz Sônia Braga, em uma das primeiras ações de merchandising da TV brasileira, o modelo Aranha, da Melissa, criado pelos irmãos Pedro e Alexandre Grendene, virou febre. Consagrada como marca pelas mãos do publicitário Julio Ribeiro, a Melissa nunca mais parou de vender.

Luiz Lara, fundador de uma das maiores agências de publicidade do país, a Lew'Lara\TBWA, conta a história à Folha para explicar o porquê de o seu livro recém-lançado, escrito em parceria com o jornalista Thales Guaracy, não ter "propaganda" ou "publicidade" no título. A obra se chama "A Alma Brasileira do Negócio: Da Era de Ouro à Era Digital, Como a Comunicação Transforma o Mundo".

"A publicidade é um instrumento, é a indústria de ponta da economia criativa que movimenta todas as outras indústrias", diz Lara, 63, um bacharel em direito, de família quatrocentona, que dirigiu a área de marketing das empresas públicas Paulistur e Embratur antes de trabalhar na Almap e, na sequência, abrir os próprios negócios. Primeiro a DLA, em 1988, com o empresário e ex-governador de São Paulo João Doria, e em 1992 a Lew'Lara, com o criativo Jaques Lewkowicz.

"Uma publicidade bem-feita muda a sua percepção sobre um produto, um serviço, fazendo com que eles atinjam um valor muitas vezes superior ao preço que cobram. A sandália de plástico valia pouco até aparecer nos pés da protagonista da novela. Isso é negócio. É a comunicação usada como ferramenta para empreender, para desenvolver produtos e serviços que atendam ao público final."

Nesse sentido, diz Lara, publicidade vai muito além do anúncio na mídia, da ação de merchandising ou do post em rede social: faz parte da economia, justamente por estar vinculada a padrões de consumo, que estão em constante mudança.

Ao longo das 184 páginas, Lara relata parte da história da publicidade brasileira que acompanha a sociedade e seus costumes. A "era de ouro" mencionada no título remete aos anos 1980, quando os criativos brasileiros passaram a ser reconhecidos entre os melhores do mundo.

O autor destaca a relevância de marcas e campanhas que mudaram hábitos: Kolynos ressaltou a necessidade do hálito fresco, Omo apoiou a troca do tanque pela máquina de lavar roupa, Valisère ensinou as adolescentes a usarem sutiã, a USTop deu liberdade ao homem para trocar a camisa branca pela colorida.

'A alma brasileira do negócio: Da era de ouro à era digital, como a comunicação transforma o mundo', livro de Luiz Lara e Thales Guaracy (editora Matrix) - Amazon/Divulgação

E ainda celebra criativos que deram vida a bordões memoráveis como "Não é assim uma Brastemp" (Julio Ribeiro), "Bombril tem mil e uma utilidades" (Washington Olivetto) e "Efeito Orloff: eu sou você amanhã", de Jaques Lewkowicz. Também é de autoria do sócio de Lara a célebre campanha do cigarro Vila Rica que, em 1976, instituiu a "Lei de Gerson": "Gosto de levar vantagem em tudo, certo?". Anos depois, o slogan geraria uma discussão antropológica sobre o "jeitinho brasileiro".

Para além da nostalgia, se deparar com campanhas de décadas passadas mostra o quanto a publicidade, refletindo a sociedade da época, muitas vezes reforça estereótipos. Foi assim com a propaganda de cerveja que objetifica o corpo da mulher, uma receita seguida pela Lew'Lara quando atendia a conta da Schin. "Hoje seria impensável uma campanha como essa, até porque as mulheres compõem 45% do público que consome cerveja", diz Lara.

Também era gritante a ausência de negros na publicidade, como se o Brasil estivesse no hemisfério Norte. Um negro só costumava ser protagonista em filme quando já era celebridade, como foi o caso de Pelé na campanha de Nokia: "O mundo todo só fala nele". Também o jogador Ronaldo estrelou a campanha "Eu sou brasileiro e não desisto nunca", da ABA (Associação Brasileira de Anunciantes).

"Eu acho que a propaganda é um retrato da sociedade. Mas claro que é papel do publicitário antever tendências, precisa sair da caixa", diz.

Nesse sentido, o atual chairman da Lew'Lara e presidente do CENP (Fórum de Autorregulação do Mercado Publicitário) se preocupa com a nova geração de publicitários, que se apega mais a algoritmos do que à própria vivência, única capaz de gerar "insights" que nenhuma inteligência artificial pode criar.

Ao tratar da era digital no livro, Lara destaca a transformação da mídia tradicional, como os jornais que se tornaram online -"Agora não lemos o jornal do dia, mas o jornal todo o dia"- e o fato de que o consumidor deixou de ser passivo e se transformou na própria mídia, com espaço para disseminar sua opinião pelas redes sociais.

"A publicidade brasileira está perdendo humor e emoção, está perdendo a oportunidade de gerar repercussão", diz Lara. "Não por causa do mundo multiplataforma, que deixou a atenção do público muito mais fragmentada. Mas por causa de uma geração que vive nas telas, em busca de indicadores de algoritmos, e deixa de encontrar a verdade nas ruas. Eles precisam colocar a barriga no balcão, olhar o negócio do cliente com olhar de empreendedor e pensar no que o consumidor quer."

Na opinião de Lara, é isso que fez a propaganda brasileira se firmar como a terceira mais premiada do mundo, depois da americana e da britânica. Mas, ironicamente, a busca por premiações tem direcionado os criativos, trabalhando contra o retrato do "mundo real" nas campanhas, que mostrem problemas e vulnerabilidades da sociedade, uma tendência da comunicação nos dias de hoje.

Os escândalos envolvendo a maior premiação da publicidade mundial, o festival de criatividade Cannes Lions, neste ano, são fruto dessa falta de conexão com as ruas, diz ele. "É preciso se atentar ao básico, ter ética, e não inventar situações que nunca existiram", diz. "Todo o mundo gosta de prêmio, de ver o próprio talento reconhecido. Mas propaganda não existe para isso. Publicidade existe porque é negócio."

Em "A Alma Brasileira do Negócio", o autor não cai na armadilha comum em autobiografias de louvar os próprios feitos. Embora elenque as conquistas de grandes contas pela Lew'Lara, como Natura, Friboi, Schin, Real/Santander, Nissan, TIM e Adidas, Lara abre espaço para destacar figuras que admira.

São citados publicitários como Alex Periscinoto (Almap), Roberto Medina (Artplan), o trio Roberto Duailibi, Francesc Petit e José Zaragoza (que criou a DPZ), Nizan Guanaes (DM9DDB e Africa), Fabio Fernandes (F/Nazca), Marcello Serpa (AlmapBBDO), Alexandre Gama (Neogama) e Stalimir Vieira (ex-sócio na DLA).

Como um homem de negócios, que cuidava das áreas de atendimento e planejamento na agência, Lara mostra a importância de cultivar relacionamentos. Alguns deles começaram desde a sua época no Colégio Rio Branco, em São Paulo, com os irmãos Raul e João Doria, por exemplo. Outros se formaram ao longo da carreira, como a amizade com Fabio Barbosa, chairman da Natura, responsável pelo prefácio do livro, que Lara conheceu quando o executivo ainda era presidente do banco Real.

Mas a vontade de escrever veio quando ele se deu conta de que parte da própria história se foi com dois amigos perdidos no ano passado: Jaques Lewkowicz e Washington Olivetto.

A ALMA BRASILEIRA DO NEGÓCIO: DA ERA DE OURO À ERA DIGITAL, COMO A COMUNICAÇÃO TRANSFORMA O MUNDO
Preço R$ 54 (184 págs.); R$ 37 (ebook)Autoria Luiz Lara com Thales GuaracyEditora Matrix

Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/10/publicidade-brasileira-esta-perdendo-humor-e-emocao-diz-luiz-lara.shtml