Vale tudo para blindar deputados investigados e anistiar Bolsonaro, por Luiz Carlos Azedo

Vale tudo para blindar deputados investigados e anistiar Bolsonaro, por Luiz Carlos Azedo

O ambiente é surreal. Enquanto a blindagem era discutida em plenário, a oposição indicou Eduardo Bolsonaro, que vive nos Estados Unidos, como líder da minoria na Câmara

A cena política brasileira nesta terça-feira poderia facilmente ter saído de um roteiro de novela. A Câmara dos Deputados decidiu votar a PEC das Prerrogativas, chamada de PEC da Blindagem, em meio a um ambiente de forte pressão do Supremo Tribunal Federal (STF) e de investigações sobre o mau uso das emendas parlamentares. A iniciativa revela a força de políticos enrolados em desvios de recursos públicos, que se escondem atrás do discurso de conter "avanços" do Judiciário sobre o Congresso. O que está em jogo não é a defesa da democracia, mas, sim, a tentativa de redesenhar as regras para escapar da responsabilização judicial.

A verdadeira motivação da PEC da Blindagem são as investigações a cargo da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Polícia Federal para apurar irregularidades graves em emendas Pix, mecanismo que transfere recursos da União diretamente a estados e municípios sem rastreamento. Das 10 cidades que mais receberam recursos de emendas, relatórios apontaram desvios em pelo menos nove, e o ministro Flávio Dino, do STF, determinou o aprofundamento das apurações, com indícios de fraudes que envolvem prefeituras, empreiteiras e parlamentares que direcionaram recursos sem transparência. Trata-se de expor a engrenagem de um dos maiores esquemas de desvio de recursos públicos da história recente.

O ministro Alexandre de Moraes, que já concentra investigações relacionadas à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, também tem acompanhado de perto a tramitação desses inquéritos, na medida em que eles se conectam à utilização de verbas públicas para financiar redes de apoio político. Outros ministros, como Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, têm defendido a necessidade de garantir rastreabilidade nas emendas, reforçando que o princípio constitucional da moralidade administrativa não pode ser relativizado. A reação da Câmara, portanto, é um contra-ataque direto ao Supremo, no qual reivindica para si o poder de formar culpa e julgar, o que é inconstitucional.

O ambiente na Câmara é surreal. Nesta terça-feira, enquanto a blindagem era discutida em plenário, a oposição anunciou a indicação de Eduardo Bolsonaro como líder da minoria. O gesto expõe a lógica de vale-tudo que domina a cena política. Eduardo, que reside nos Estados Unidos e está sob investigação por ter pedido ao governo Donald Trump sanções contra o Brasil e retaliações ao ministro Moraes, assume a liderança mesmo sem cumprir suas obrigações regimentais. A manobra visa evitar que suas faltas resultem na perda do mandato, já que a condição de líder garante a justificativa automática de ausências. É a transformação do regimento interno em escudo político.

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), pautou a votação da PEC da Blindagem e pretende fazer a mesma coisa com a PEC da Anistia, em análises relâmpago, com votação remota. Essa decisão desmoraliza a Casa e reduz o seu papel a uma espécie de "rainha da Inglaterra", sem poder efetivo sobre as manobras internas, com todo respeito ao parlamentarismo britânico. Em vez de conduzir a instituição com autoridade, terceiro homem na linha de sucessão da Presidência, Motta cede às pressões de bancadas que desejam transformar a Câmara em um bunker contra a ação da Justiça.

Corrosão da confiança


Não é coincidência que o plenário seja convocado a votar agora uma proposta que, na prática, limita o poder do STF sobre deputados e cria um ambiente de blindagem coletiva. Há um pacto perverso entre os deputados de extrema-direita e seus colegas de todas as tendências enrolados nos inquéritos policiais. A PEC das Prerrogativas é apresentada como "resgate da Constituição de 1988", mas funciona como uma tentativa de restaurar privilégios perdidos ao longo de decisões recentes da Corte. Vale lembrar que, em 2024, o Supremo já havia restringido o uso indiscriminado das emendas de relator, conhecidas como "orçamento secreto", impondo transparência mínima aos repasses. O que se vê agora é a resposta legislativa: mudar a Constituição para travar o controle externo sobre as atividades ilícitas de parlamentares.

Esse enredo se soma a outro movimento em curso: a articulação pela anistia de Jair Bolsonaro e de militares condenados pela trama golpista de 8 de janeiro de 2023. Apresentada sob o manto da "pacificação nacional", a proposta reedita velhas fórmulas de conciliação que, ao longo da história, sempre serviram para perpetuar a impunidade. O resultado foi o mesmo: proteger atores políticos e militares envolvidos em violações da ordem democrática. Agora, repete-se a lógica, com um ex-presidente condenado por tentativa de golpe buscando ser beneficiário da indulgência congressual.

Ora, a Constituição de 1988 veda a anistia nesses casos porque foi concebida para não permitir que se repitam os fatos que levaram às ditaduras de 1930 e 1964, que duraram 15 e 21 anos, respectivamente. A analogia com a novela Vale Tudo é pertinente. A pergunta que atravessava os episódios de Gilberto Braga, agora em remake, era simples e cruel: "Vale tudo para vencer?" A sociedade reformula a indagação: vale tudo para blindar deputados investigados e anistiar Bolsonaro? O risco é a corrosão da confiança pública nas instituições, já abalada por anos de escândalos de corrupção e por tentativas reiteradas de desestabilização da ordem democrática.

Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/vale-tudo-para-blindar-deputados-investigados-e-anistiar-bolsonaro/