Ministro era conhecido por histórico punitivista, o que não se viu em sua manifestação no julgamento
Por Joelmir Tavares, Valor - São Paulo
O voto do ministro Luiz Fux no julgamento da trama golpista, nesta quarta-feira (10), foi considerado contraditório e divergente em relação ao seu histórico punitivista, na avaliação de especialistas em direito consultados pelo Valor. O magistrado destoou dos colegas que votaram no dia anterior, Alexandre de Moraes, relator do caso, e Flávio Dino, que rejeitaram todos os pedidos das defesas e votaram pela condenação de Jair Bolsonaro e de outros sete réus.
A sessão de hoje da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal deve ser dedicada totalmente à leitura do voto de Fux.
"Há inconsistências no voto de Fux. O problema não é ele adotar as teses de defesa, mas mobilizar argumentos que são contraditórios um com o outro, dependendo do que ele está dizendo", diz Rubens Glezer, professor de direito constitucional da FGV Direito-SP e autor do livro "Catimba Constitucional", sobre o histórico recente do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na opinião de Glezer, Fux escolheu visões conforme a conveniência e, ao apresentar "argumentos contraditórios entre si", gerou "fragilidade no discurso jurídico ou, pelo menos, uma tensão lógica muito grande".
O professor afirma que isso ocorreu quando o ministro criticou a possibilidade de o Supremo mudar seu entendimento sobre foro privilegiado, mas em seguida se justificou sobre sua própria alteração de entendimento sobre delação premiada, pregando que "o direito é mutável, flexível e tem que acompanhar a sociedade".
O voto de Fux foi "diametralmente oposto" ao de Moraes não só no conteúdo, mas também na forma, observou Bruno Salles Ribeiro, mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Salles Ribeiro Advogados.
Para o advogado, chamou a atenção que, sobretudo na parte inicial de sua explanação, Fux tenha "se dedicado quase que exclusivamente aos referenciais teóricos", enquanto "o relator focou seu voto nos fatos, nas provas e em sua adequação aos tipos penais (crimes)".
O especialista afirma que não ficou claro o que levou Fux a avaliar certas condutas dos réus como atos preparatórios, e não executórios. "Fica difícil entender qual referencial teórico ele usou."
Ribeiro considera ainda que Fux "desvirtuou o conteúdo dos votos" de Moraes e Dino, ao dizer que opiniões não poderiam ser consideradas crimes de golpe. "Os ministros que julgaram pela condenação, contudo, jamais sustentaram isso. Apenas contextualizaram esses fatos com outros atos de execução que foram minuciosamente enumerados."
O voto de Fux foi "tecnicamente ruim", com "um compilado de citações doutrinárias, que não ajudam a conclusão do ministro", na avaliação de Ricardo Yamin, advogado, doutor em direito pela PUC-SP e sócio do YFN Advogados. "Juridicamente, o voto é perigoso, pois criaria um precedente ruim em diversas matérias criminais", completa.
Yamin diz ainda que "o ministro fez um raciocínio absolutamente equivocado" para conseguir chegar à conclusão de que não houve tentativa de golpe, usando como base de comparação outros momentos históricos. "Ele colocou, em grau de igualdade, uma pedrada em uma vidraça na avenida Paulista e um presidente da República se reunir com os comandantes das Forças Armadas, com uma minuta de Estado de sítio, após uma eleição infrutífera. Isso é desconsiderar todo o contexto na hora de julgar."
Já o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) declarou que o STF ganha com as discordâncias e que "a unanimidade nem sempre é a melhor solução". Segundo Kakay, "o voto divergente do Fux só reforça a importância deste julgamento e a completa independência do Supremo Tribunal. Ele ficará vencido em um julgamento que garantiu todo o direito de defesa, e é nesta divergência que reside a beleza do Direito".
Preliminares
Fux acatou a maior parte das questões preliminares apresentadas pelos advogados de defesa e considerou que o processo deveria ser anulado, mas manteve a validade da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, contrariando expectativas de que pudesse questioná-la.
"O ministro Fux, apesar de ter votado pela nulidade do processo, avançou sobre o mérito, o que é incomum na maioria dos julgamentos, já que não faria sentido julgar a culpabilidade ou inocência em um processo que se considera nulo", avalia Ribeiro.
Segundo o advogado, Fux divergiu do posicionamento precedente da corte sobre competência originária, quando declarou que a trama golpista não envolve pessoas com prerrogativa de foro.
"A atual regra de prerrogativa de foro do STF é a seguinte: vale para crimes ligados ao cargo, cometidos durante o mandato. Essa competência se estende mesmo após o fim do mandato. O STF decidiu isso antes do início deste julgamento e reiterou esse posicionamento nos julgamentos do 8 de janeiro", explica Ribeiro.
Há ainda a previsão do regimento do STF de que ataques à corte possam ser julgados pelo próprio tribunal. "Esse é o fundamento para a instauração do inquérito dos ataques à corte pelo então presidente [Dias] Tofolli e que designou Alexandre como relator. Dele deriva o chamado Inquérito das Fake News e dos atos antidemocráticos."
Ribeiro frisa ainda que Fux voltou atrás e validou os benefícios da colaboração de Cid. "O voto pode ser consequência direta dos posicionamentos exarados ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, que chegou a reputar como 'litigância de má-fé' a alegação de que haveria nove delações distintas."
Segundo a advogada Beatriz Alaia Colin, ao defender que o STF não poderia processar e julgar o núcleo principal da tentativa de golpe, Fux "contraria o entendimento adotado pelo plenário da corte em março deste ano, quando se decidiu pela prorrogação do foro por competência de função".
"É importante salientar que Fux restou vencido no julgamento deste ano que entendeu pela prorrogação do foro por prerrogativa de função, então, ao menos a rigor, ele não está sendo contraditório em relação à sua posição anterior, mas, sim, ao entendimento colegiado que se formou naquela oportunidade", completa Colin, que é especialista em direito criminal do Wilton Gomes Advogados.
Histórico punitivista
Os analistas também avaliam que a postura garantista, isto é, mais favorável aos argumentos das defesas, destoou do perfil punitivista ao qual Fux é associado.
O advogado criminalista David Metzker, mestrando em direito penal pelo IDP/Brasília, aponta que Fux é um dos ministros do STF que menos concedem habeas corpus (HCs) e recursos em habeas corpus (RHCs). Segundo Metzker, ele concedeu neste ano nove pedidos, o que corresponde a um índice de 0,82% de concessão em decisões de mérito na classe HC/RHC.
"Embora a decisão de Fux neste julgamento tenha sinalizado maior atenção a teses defensivas, os dados empíricos mostram que essa postura não se reflete, de modo geral, em seu histórico de habeas corpus e recursos em habeas corpus. Todavia, é importante frisar que um tema em que ele costuma conceder é sobre competência. Então, nesse ponto, ele está sendo realmente coerente", afirma Metzker.
Segundo ele, os entendimentos levados pelo ministro nesta quarta não costumam ser vistos no dia a dia dos habeas corpus relatados por ele ou no seu posicionamento diante de casos levados ao colegiado por outros relatores.
Glezer diz que "todo o histórico de Fux, desde a entrada dele no STF, é punitivista" e que ele agiu assim nos julgamentos do mensalão, da Operação Lava-Jato e dos réus pelos ataques de 8 de janeiro de 2023, com "com penas e recados duros de combate à impunidade".
"O que vemos no atual julgamento é uma inversão completa de postura, em relação à doutrina jurídica mobilizada e na forma como os argumentos são construídos, sendo que a lei e os fatos relevantes não mudaram. É muito difícil explicar isso pelo Direito, porque os elementos e o contexto jurídicos não se modificaram de forma relevante. Pode ser que ele queira fazer um contraponto para mostrar que existe um 'julgamento justo'", afirma o docente da FGV.
Valor
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