Mulheres dizem que o flerte cara a cara acabou: o que pode estar por trás disso? Imagem: Getty Images |
'Na festa, ele mandou direct': mulheres dizem que homens não 'chegam' mais

'Na festa, ele mandou direct': mulheres dizem que homens não 'chegam' mais

Sofia Pilagallo

Frases como "as mulheres héteros estão no mapa da fome", "ser solteira é insalubre" e "quem casou, casou" vêm sendo repetidas à exaustão nas redes sociais por mulheres que, no auge da juventude, vêm enfrentando dificuldade para se relacionar com homens.

O flerte ao vivo vem perdendo espaço para curtidas nos stories e outras interações online, e até mesmo uma conversa ou um encontro agradável parecem ter virado raridade.

Nas redes sociais, as mulheres fazem os mesmos questionamentos: "O que aconteceu com os homens? Por que eles não 'chegam' mais em nós?". Nos comentários das publicações, centenas de homens palpitam sobre o assunto, por vezes com agressividade, deixando pistas que indicam parte da resposta.

A questão passa por diversos aspectos, que vão desde as facilidades da era digital e conflitos geracionais até o discurso de ódio contra mulheres.

'Não vai me dar oi?'

Letícia diz que interações que tem com homens são raras em baladas e bares
Letícia diz que interações que tem com homens são raras em baladas e bares Imagem: Arquivo pessoal

A executiva de vendas Letícia Maciel, 29, de Taquara (RS), está solteira há dois anos e conta que, desde então, tem percebido uma falta de atitude por parte dos homens na hora do flerte. Apesar de frequentar bares e boates, as interações que ela tem com homens são raras nesses ambientes.

Letícia foi uma adolescente nos anos 2010, década em que as matinês estavam em alta. Nessas festas, lembra, a paquera era o principal objetivo. Os meninos abordavam várias meninas em uma única noite e não se importavam em ser rejeitados, pois entendiam que fazia parte do jogo.

Hoje, observa Letícia, o cenário é diferente: há pouca ou nenhuma interação entre homens e mulheres em bares, boates e outros ambientes de socialização. Em maio deste ano, ela passou por uma situação que a fez perceber o quanto alguns homens perderam a capacidade de interagir ao vivo com mulheres que lhes interessam.

Eu estava numa festa com amigos quando vi um cara com quem eu flertava pelo Instagram. Ele ficou me olhando. Pensei: 'Em algum momento ele virá falar comigo.' Então, para a minha surpresa, recebi uma mensagem dele no direct [caixa de mensagens da rede social]: 'Você não vai me dar oi?'
Letícia Maciel

"O cara estava na minha frente, eu o vi digitar a mensagem. Pensei: 'Não é possível.' Mostrei a mensagem a um amigo meu. Ele olhou e disse: 'Tá, mas por que ele não vem aqui?' Então respondi: 'Não faço a mínima ideia, mas agora eu também não quero'", acrescenta.

'Mulheres passaram a chegar nos caras'

A estudante de relações públicas Júlia Abboud, 21, de São Paulo, tem a mesma percepção de Letícia, mas com uma diferença: ela é quase dez anos mais nova, por isso, não tem referência de como eram as interações entre homens e mulheres no passado.

A jovem começou a sair com amigos aos 17 anos, em 2021. Àquela época, as reuniões sociais se resumiam a festas privadas, em razão da pandemia.

Júlia se surpreendeu ao perceber que os meninos não abordavam diretamente as meninas
Júlia se surpreendeu ao perceber que os meninos não abordavam diretamente as meninas Imagem: Arquivo pessoal

"Intrigada, fiz uma pesquisa com mulheres no meu daily [perfil secundário do Instagram] para saber se eu era a única que tinha essa percepção. Então, recebi dezenas de respostas de mulheres que confirmaram minha tese", relata Júlia.

Algumas disseram que passaram a chegar nos caras diante desse novo cenário. Acho legal ter essa iniciativa, mas não é algo que eu faria.
Júlia Abboud

'Me sinto pressionado'

O estudante de jornalismo Guilherme Rodrigues, 20, de São Paulo, conta nunca ter abordado nenhuma mulher em bares, boates ou em ocasiões sociais em geral. Ele tinha fobia de lugares muito cheios e só recentemente passou a se abrir mais para a possibilidade de ter uma vida social mais ativa. Ainda assim, não se sente confortável com a ideia de abordar mulheres nesse contexto.

Guilherme sente que precisa raciocinar muito na hora de abordar uma mulher "tête-à-tête", o que o deixa inseguro e paralisado, nessas situações. Então, prefere flertar pelas redes sociais. Ali, pode desenvolver conversas mais fluidas, sem a pressão que as interações presenciais exigem.

Guilherme sente que precisa raciocinar muito na hora de abordar uma mulher "tête-à-tête"
Guilherme sente que precisa raciocinar muito na hora de abordar uma mulher "tête-à-tête" Imagem: Arquivo pessoal

"Se eu chegar numa menina, de dez caras que falaram com ela, sete disseram a mesma coisa. Então, me sinto pressionado para elaborar algo diferente", afirma Guilherme, ressaltando que não é o único entre seus amigos que pensa dessa forma.

Meus amigos também não têm o costume de abordar mulheres em ocasiões sociais. Um ou outro foge à regra, mas a maioria tem a mesma cabeça nesse sentido --seja porque tem vergonha, medo de levar um fora ou por não saber conversar.
Guilherme Rodrigues

É algo geracional?

Segundo a especialista em comportamento humano e jovens da geração Z Thaís Giuliani, fundadora do projeto Geração Zímago, os jovens da geração Z (1995-2010) tendem a apresentar baixa tolerância à frustração, o que tem impacto nas relações sociais e afetivas.

Eles acabam sendo muito impactados emocionalmente ao sofrerem uma rejeição, por exemplo, em vez de encará-la como algo natural.

Para Thaís, dois fatores explicam a baixa tolerância à frustração. O primeiro deles são as facilidades da era digital. Num mundo cada vez mais tecnológico, em que os jovens têm tudo a um clique de distância, a tendência é que as pessoas se tornem mais imediatistas e impacientes.

Flerte ao vivo vem perdendo espaço para curtidas nos stories e outras interações online
Flerte ao vivo vem perdendo espaço para curtidas nos stories e outras interações online Imagem: Getty Images/iStockphoto

O segundo fator é uma distorção da chamada "educação positiva", abordagem educacional que rejeita a punição como método principal de educação e se baseia no respeito mútuo, empatia e compreensão das necessidades da criança. Para Thais, adotar esse tipo de educação não significa não impor limites, mas criar limites claros de forma respeitosa.

"Uma criança que não teve contato com a frustração torna-se um adulto frágil, com pouco repertório emocional para lidar com os percalços da vida, por menores que sejam", diz.

Isso impacta diretamente não só nos relacionamentos afetivos dessa geração, mas na forma como se relacionam com a família, amigos, trabalho e por aí vai.
Thaís Giuliani

Crise da masculinidade

Nas redes sociais, comentários vindos de meninos e homens em publicações que tratam da falta de atitude na hora do flerte mostram que a misoginia, discurso de ódio contra mulheres, também é parte do problema.

Há centenas de comentários em um único post com o mesmo teor -frases como "hoje em dia tudo é assédio", "as leis de hoje em dia só beneficiam as mulheres" e "é mais fácil contratar uma garota de programa" são lidas aos montes.

Alex diz que muitos homens pensam que não compensa ter a iniciativa se for para ficar no 'zero a zero'Alex diz que muitos homens pensam que não compensa ter a iniciativa se for para ficar no 'zero a zero' Imagem: Arquivo pessoal

Os comentários deles também indicam um suposto foco em seu desenvolvimento pessoal em detrimento de relacionamentos, uma ideia central do movimento red pill (uma alusão à pílula vermelha do filme Matrix, que permite encarar a realidade "liberta" da ilusão).

Homens influenciados por esse discurso acreditam que o feminismo tornou o mundo um lugar dominado pelas mulheres e prejudicial aos homens e que, portanto, a melhor escolha seria voltar a própria energia para si.

A comunidade não só propaga discurso de ódio contra as mulheres, mas também tacha de ingênuos os homens que querem agradá-las. Frases como "pare de ser otário" ou "pare de ser gado de mulher" são alguns mantras dos red pills.

"Recentemente contei a um amigo que tinha ido a um encontro e pagado todo o valor da conta, mesmo não tendo ficado com a mulher. Então ele perguntou por que eu tinha feito aquilo", conta o engenheiro de software Alex Ribeiro, 35, de São Paulo.

Esse é um comportamento natural para mim, mas a verdade é que muitos homens pensam como meu amigo. Acreditam que não compensa ter essa iniciativa se for para ficar no 'zero a zero'.
Alex Ribeiro

'Homens têm perguntas a responder'

'Como funciona o jogo da sedução?': para psicoterapeuta de casais, homens ainda precisam ressignificar conceitos que mudaram'Como funciona o jogo da sedução?': para psicoterapeuta de casais, homens ainda precisam ressignificar conceitos que mudaram Imagem: Getty Images

Para a psicoterapeuta de casais e filósofa Célia Horta, doutora em psicologia pela USP, o avanço na igualdade de gênero, nas últimas décadas, trouxe mudanças profundas. Mulheres passaram a não tolerar comportamentos antes naturalizados, como importunação sexual.

Os homens, por outro lado, não foram capazes de ressignificar seu papel na sociedade diante desse novo cenário -e estariam passando por uma crise na masculinidade em decorrência de uma "transição identitária". Confusos, muitos reagem a essas mudanças com agressividade.

Muitos homens dizem que o feminismo avançou demais. Não é isso. É que ainda não deu tempo de os homens processarem essas mudanças e repensarem seu lugar no mundo frente a esse novo contexto.
Célia Horta, psicoterapeuta de casais e filósofa

"Como é desejar uma mulher sem necessariamente ter de dominá-la? Como funciona o jogo da sedução? Essas são algumas perguntas que os homens ainda precisam responder", acrescenta.

Uol
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2025/07/20/na-festa-ele-mandou-direct-mulheres-dizem-que-homens-nao-chegam-mais.htm