A decisão dos EUA de impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros expôs falhas diplomáticas do Brasil e o uso político do comércio por Trump, mas a firme reação brasileira e o pragmatismo histórico indicam que o foco se voltará à negociação para proteger indústria e agro. Mesmo em meio a tensões ideológicas, o interesse nacional deve prevalecer, como em crises passadas, até que as relações bilaterais retornem à normalidade
A decisão do governo Trump de taxar em 50% os produtos brasileiros de exportação para os EUA pegou as autoridades brasileiras de surpresa e deixou muita gente perplexa. Se for recapitulada a retórica das altas autoridades brasileiras em relação ao candidato Trump e depois ao presidente eleito, o que aconteceu com a comunicação oficial da altíssima tarifa não deveria surpreender a ninguém. A crise estava contratada e aconteceu, dada a personalidade e a imprevisibilidade de Trump.
Não cabe aqui repetir o que foi dito sobre Trump e o apoio público à candidata democrata na eleição presidencial. Merece referência apenas a ação da oposição bolsonarista ao governo Lula e a ausência do estabelecimento de canais de comunicação do governo brasileiro com a Casa Branca e com o Departamento de Estado depois da eleição até hoje por questões ideológicas.
'Enquanto a oposição trabalhava contra a ação do STF, o governo brasileiro não procurou neutralizar a ação do filho do presidente Bolsonaro'
Enquanto a oposição ao governo Lula trabalhava contra a ação do STF no julgamento do ex-presidente Bolsonaro desde antes da eleição, em vários níveis do partido republicano próximo de Trump, o governo brasileiro não procurou neutralizar a ação do filho do presidente Bolsonaro com explicação sobre o devido processo legal no julgamento e as alegações falsas sobre a perseguição ao ex-presidente.
Sem dúvida, o tarifaço americano contra os produtos brasileiros foi adotado não por questões econômico-comerciais (o Brasil é deficitário na balança comercial com os EUA), mas por motivações políticas, e representou um abuso das autoridades norte-americanas e uma interferência indevida em assuntos internos brasileiros, sobre os quais o Executivo não tem controle (o julgamento no STF).
Além da inclusão de comentários inapropriados sobre essas questões internas brasileiras, a carta menciona adicionalmente a regulamentação da mídia social, das big techs, em curso no STF. Sabe-se que a Europa recuou da discussão interna para essa regulamentação para não confrontar os interesses dos EUA. Dependendo de como avançar a discussão no âmbito do STF e do Congresso Nacional esse poderá ser outro item de conflito com o governo Trump.
'A resposta à intromissão de Trump em questões políticas internas nacionais foi dura e correta'
Do ponto de vista brasileiro, a resposta à intromissão de Trump em questões políticas internas nacionais foi dura e correta, com a chamada do encarregado da embaixada dos EUA para ser oficialmente informado da repulsa brasileira à ingerência interna e posteriormente para a devolução da carta cujos termos não eram inaceitáveis para o governo brasileiro. Resta agora, a exemplo de todos os outros países, concentrar os esforços do governo na negociação comercial para a redução dos 50% até 1º de agosto e definir as contrapartidas que poderão ser oferecidas.
O interesse nacional exige que, agora, acima das questões ideológicas e partidárias, o foco deve ser a negociação para a rebaixa das tarifas para defender a indústria e o agro. O Brasil exportou no ano passado US$ 40 bilhões, e nem todos os produtos da pauta de exportação poderão ser realocados para outros mercados (como o aço, o alumínio e os aviões da Embraer).
'As declarações políticas das autoridades brasileiras contra Trump e os EUA devem ceder espaço para pronunciamentos técnicos'
As declarações políticas das autoridades brasileiras contra Trump e os EUA devem ceder espaço para pronunciamentos técnicos buscando a superação das dificuldades atuais.
Essa é uma das crises mais importantes no relacionamento bilateral, mas não é a mais grave. No império, o Brasil suspendeu duas vezes o relacionamento com os EUA. No governo militar, a interferência interna no tocante a críticas aos abusos aos direitos humanos, levou Geisel a suspender o acordo militar com os EUA. A espionagem do NSA dos EUA contra Dilma Rousseff fez com que fosse cancelada uma visita de Estado da presidente brasileira a Washington. Em todos esses casos, a crise foi superada e as relações entre os dois países retornaram à normalidade. No caso do tarifaço não vai ser diferente.
Apesar das diferenças ideológicas e das personalidades envolvidas, a crise vai ser superada e a normalidade vai voltar a prevalecer, com cada país defendendo os respectivos interesses nacionais, sem confrontação ideológica.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
Interesse Nacional
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